Emendas
parlamentares podem ter a sua constitucionalidade questionada
Até parece que Bolsonaro fez sua reforma ministerial para ofuscar em parte o noticiário altamente negativo sobre a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021. Ela veio só no dia 25 deste mês, num atraso que por si já demonstrou a falta de seriedade com que o Parlamento tratou de assunto tão importante.
Para detalhes dessa LOA recomendo a Nota Técnica 46, publicada na segunda-feira pela Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, entidade de reconhecida competência na análise de questões fiscais. Essa nota técnica está em https://www12.senado.leg.br/ifi/notas-tecnicas-ifi.
Aliás, o diretor executivo da IFI, Felipe Salto, escreveu neste espaço logo no dia seguinte à publicação da mesma nota, e enfatizou que “o Orçamento de 2021 requer novo alerta: a redução de despesas obrigatórias a níveis pouco razoáveis, tecnicamente, traz riscos à transparência nas contas públicas e à gestão da política fiscal. A boa prática orçamentária recomenda prudência. Se há probabilidade alta de uma despesa vir a ser feita, ela deve ser fixada na LOA”.
Assim,
a redação da Lei Orçamentária envolveu o “cancelamento” parcial de despesas
obrigatórias (abono salarial, seguro-desemprego, previdência do INSS e outras
menores), num total de R$ 26,5 bilhões, valor esse que abriu espaço
principalmente (R$ 26 bilhões) para despesas discricionárias relativas a
emendas de interesse do relator do projeto e de parlamentares do seu círculo
político. Ou seja, o “cancelamento” foi feito subestimando despesas
obrigatórias, subestimação essa avaliada comparando seu valor na LOA com as previsões
de gastos efetivos realizadas pela IFI.
É
um caso de contabilidade criativa esse “cancelamento” orçamentário de despesas
que deverão ser efetivamente realizadas. Isso, repito, para abrir espaço para
emendas que levam a gastos de interesse de parlamentares. Foi por isso que o
ministro Guedes disse que o Orçamento se tornou “inexequível”.
Como
fazer para cancelar esse “cancelamento”? Diz-se que o presidente da República
deveria vetar a lei, fala-se em corte das emendas e de haver um recurso ao
Tribunal de Contas da União. Mas tudo envolve dificuldades administrativas,
jurídicas e políticas.
E
para onde irá o dinheiro se essa contabilidade criativa não for revertida?
Matéria publicada na Folha de S.Paulo de terça-feira mostrou que foram
particularmente beneficiados Estados aliados de Bolsonaro e do Centrão, com
destaque para Paraíba, Rio Grande do Norte, Amapá e Piauí. A comparação foi
feita “... com base na proporção entre o dinheiro recebido e o tamanho da
bancada no Congresso”. Rio de Janeiro ficou com zero e São Paulo com valor
próximo disso.
Passo
agora a focar em aspectos políticos e legais das emendas parlamentares, pelas
quais tenho antiga indisposição. Foram crescendo de tamanho. Segundo o
jornalista Daniel Weberman, em matéria neste jornal de 27 de março, em 2020
alcançaram R$ 35,4 bilhões. É um valor próximo de tudo o que é gasto com o
programa Bolsa Família! Tais emendas são voltadas principalmente para obras
indicadas por deputados em benefício de suas bases eleitorais, o que equivale a
um financiamento público de campanhas individuais, em favor de candidatos com
mandatos. Os sem mandato não têm essas verbas. Mas a Constituição, no seu
artigo 4.º, diz que todos são iguais perante a lei, numa de suas cláusulas
pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas por reformas constitucionais.
Acontece
que essas abjetas emendas parlamentares também foram colocadas na Constituição,
numa dessas reformas. Seriam, então, constitucionais ou inconstitucionais? Há
tempos tinha a curiosidade de saber se não haveria uma hierarquia de princípios
constitucionais. Recentemente pesquisei o assunto na internet e encontrei texto
do jurista Douglas Cunha (https://douglascr.jusbrasil.com.br/artigos/616260325/a-piramide-de-kelsen-hierarquia-das-normas).
Quanto
ao aspecto que me interessa, é dito o seguinte: “Não existe hierarquia entre
normas constitucionais originárias e normas constitucionais derivadas. Embora
não exista hierarquia entre normas constitucionais originárias (acrescento:
como o artigo 4.º citado) e derivadas (como as reformas constitucionais), há
uma importante diferença entre elas: as normas constitucionais originárias não
podem ser declaradas inconstitucionais. Em outras palavras, as normas
constitucionais originárias não podem ser objeto de controle de constitucionalidade,
todavia, as emendas constitucionais (normas constitucionais derivadas) poderão,
sim, ser objeto de controle de constitucionalidade”.
Assim,
vislumbro aí um caminho judicial para que seja declarada a
inconstitucionalidade das emendas parlamentares. Vou consultar juristas sobre
como seguir por esse caminho. Seria importante que essas emendas fossem
derrubadas, pois constituem importante distorção do Orçamento público e do
sistema político brasileiro.
*Economista (UFMG, USP e HARVARD), professor sênior da USP. É Consultor Econômico e de Ensino Superior
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