Março,
com tantas mortes, deixará saudades em face do que está por vir
A
verdade é que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro já deveria ter
desmoronado há muito tempo, mas ainda resiste como atestam as pesquisas. O que
explica isso? Arrisco um palpite: ele despertou o que existe de pior em cada um
de nós. E milhões de brasileiros deixaram transbordar o que antes escondiam.
O
desprezo pela vida alheia, por exemplo. Desde que eu sobreviva à pandemia,
pouco me importa quantos morram. Como disse Bolsonaro: morrerão os que tiverem
de morrer, principalmente os mais fracos, doentes, incapazes de resistir a uma
mera gripezinha que em dezembro, como ele previu, estava no finalzinho.
A ambição dos que tentam extrair vantagens de tudo é outro exemplo. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, patrocina a aprovação de um projeto para que empresários possam comprar vacinas, se imunizarem e imunizarem seus empregados, despesas que seriam abatidas do Imposto de Renda.
A
justificativa de Lira, um deputado a serviço de quem lhes paga as contas: se
está difícil para o Ministério da Saúde vacinar todo mundo, que a iniciativa
privada o faça. Um funcionário de fábrica vacinado graças ao seu patrão,
afirmou Lira, será uma pessoa a menos a ser vacinada pelo poder público.
Em
parte alguma do mundo isso acontece. A Rainha da Inglaterra só foi vacinada
quando chegou a sua vez. De resto, a escassez de vacinas é geral. Só os
governos responsáveis foram capazes de se antecipar ao aumento da demanda
comprando vacinas para além do necessário. Não foi o caso do governo do
ex-capitão.
Outro
exemplo: a indisposição de uma sociedade por excelência individualista em
obedecer ordens baixadas em nome do bem comum. É por isso que tantos dão razão
a Bolsonaro quando ele diz que as pessoas devem fazer o que quiserem, ir aonde
quiserem, mesmo que se contaminem e contaminem os próximos.
É por esses motivos, e também porque o presidente acredita que procedendo assim garante as chances de se reeleger no ano que vem, que o Brasil bate recordes de mortes pela Covid. Março, que terminou ontem, foi o pior mês de toda a pandemia, superando julho do ano passado que detinha o título macabro.
Mesmo
assim, sentiremos saudades de março a confirmarem-se as previsões de que este
mês de abril para os brasileiros será o pior das nossas vidas até aqui. Isso
não impede que o presidente da República e os que compartilham suas ideias
sigam indiferentes à tragédia que ainda não ganhou seus contornos definitivos.
O
comitê recém-criado para coordenar as ações do governo federal no combate ao
vírus revela-se inócuo. Do que adianta o ministro da Saúde defender tardias e
limitadas medidas de isolamento se na mesma hora, em outro evento oficial,
Bolsonaro prega o contrário, recomendando a todas as pessoas que circulem à
vontade?
O
procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal
que suspenda decretos municipais e estaduais que proíbem a realização de
cultos, missas e outras atividades religiosas de caráter coletivo. Alegou que a
assistência espiritual é essencial para muitas pessoas enfrentarem a pandemia.
Essencial
é que fiquem em casa todos que puderem ficar. E que mesmo em casa, não façam
reuniões familiares. No Distrito Federal, hospitais não têm como acomodar os
corpos de vítimas da Covid, e cemitérios distribuem senhas entre famílias que
desejam enterrar seus mortos dada à falta de covas em número suficiente.
O
Ministério da Saúde reduziu quase à metade o número de doses de vacinas que
estariam disponíveis em abril. O neurocientista Miguel Nicolelis, professor da
universidade Duke, nos EUA, adverte no jornal El País: “Estamos a poucas
semanas de um ponto de não retorno da crise do coronavírus no Brasil”.
O
que isso pode significar, de acordo com ele: mais de 4.000 e até 5.000 mortes
diárias e um total de 500.000 vítimas em julho. O que mais o preocupa é a
possibilidade de um colapso funerário. Se isso ocorrer, “veremos corpos
abandonados pelas ruas em espaços abertos e o uso de valas comuns para enterros
coletivos”.
Se você não acredita nisso, acha um exagero, ou pensa que nada o afetará, esteja certo: você é um bolsonarista enrustido e não sabe.
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