Folha de S. Paulo
Impeachment parece descer sobre Brasília,
mas as aparências enganam
Nuvens de chumbo. As taxas
de aprovação de Bolsonaro desabaram para 25%, enquanto a alta finança
e o agronegócio finalmente abandonam o presidente. O cerco se fecha no
Congresso, com a CPI da Covid, e nas ruas, com
manifestações em plena pandemia. A sombra do impeachment parece descer
sobre Brasília. Aqui, porém, vale o mais clássico dos chavões: as aparências
enganam.
Impeachment exige, além
de crimes de responsabilidade, que não faltam, um alto nível de consenso
político e social. Consenso político: a ruptura de uma expressiva maioria
parlamentar com o Planalto. Consenso social: o rechaço majoritário à figura do
presidente, expresso não só em sondagens de opinião mas em massivas
mobilizações populares. As duas precondições estão ausentes do cenário.
Na sua primeira etapa, a CPI da Covid documentou a extensa coleção de crimes do governo federal contra a saúde pública. Normalmente, CPIs têm a missão de desvendar mistérios. No caso da CPI em curso, não havia mistério: à luz do dia, o governo federal deixara a nação à mercê da pandemia, agravando desastrosamente a crise sanitária. A tarefa dos senadores circunscrevia-se à coleta de provas dos crimes cometidos pelo presidente e por seu círculo próximo.
A missão foi cumprida --mas, no lugar de um
relatório devastador, base política e jurídica para o impedimento presidencial,
a CPI desviou-se para um labirinto
de investigações sobre obscuros esquemas de corrupção na aquisição de
vacinas. O novo foco a converte em ferramenta de uma estratégia eleitoral.
Renan Calheiros desempenhou papel crucial na reorientação, o que nada tem de
casual.
A corrupção é a nota musical perene da vida
política nacional desde a redemocratização. Hoje, a troca do foco do crime
maior, contra a saúde pública, pelo menor, as artimanhas
corruptas que cercam o contrato da Covaxin, atende aos interesses da
campanha lulista. Até 2003, o PT exibia-se como o partido dos diferentes: uma
ilha de santidade em meio ao oceano da depravação. Depois dos traumas do
mensalão e do petrolão, inverteu seu discurso, passando a apresentar-se como o
partido dos iguais: não somos nem mais nem menos corruptos que os outros.
Sob essa ótica, a CPI está destinada a
marcar a testa de Bolsonaro com
o sinete da corrupção. Seu relatório final, adiado para as calendas, não
servirá para gerar a ruptura entre o Congresso e o Planalto, mas para sustentar
um álibi eleitoral.
As ruas também não são o que parecem. Sob a
direção de partidos e movimentos que orbitam ao redor do lulismo, as
manifestações antibolsonaristas são esculpidas de
forma a evitar a unidade. É por esse motivo que, ao lado da bandeira do
impeachment, os organizadores erguem estandartes contra a "política
neoliberal" e as privatizações.
Vivian Mendes, da coalizão Povo na Rua,
explicita a rejeição
à tática de frente única: "Nós trabalhamos para que as forças de
direita não tenham voz nas ruas. A rua é de todos, mas vamos nos esforçar para
que elas não tenham fala ou protagonismo". Tradução: os protestos de rua
devem preparar a campanha eleitoral, cristalizando a polarização entre
Bolsonaro e Lula.
A operação de mobilização limitada
funciona. As manifestações são suficientemente amplas para produzir impacto
político, mas permanecem restritas o suficiente para não precipitar um
desenlace indesejado. O que se pretende não é impedir o presidente, mas
sitiá-lo na sua casamata de Brasília até o dia do voto.
O interesse nacional é remover um
presidente catastrófico, que rendeu a nação ao coronavírus e, ameaçando a
democracia, planeja contestar sua inevitável derrocada eleitoral. O interesse
da esquerda lulista, por outro lado, é prolongar a tragédia para retornar ao
governo no turno inicial das eleições. A falência do chamado "centro"
político assegura o triunfo do segundo sobre o primeiro.
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