Decerto que a degradação continuada do governo Bolsonaro abre um atalho que pode facultar a irrupção de um impeachment, mas não se deve confiar nisso com o parlamento que aí está. As infaustas circunstâncias atuais parecem apontar para que a sucessão presidencial seja a hora e a vez para que o país se livre do pesadelo que o atormenta. Na aparência, uma solução fácil que reclamaria apenas as virtudes da paciência das forças democráticas para se fazer efetiva, contudo, vista de perto, plena de dificuldades que somente ações políticas bem concertadas podem evitar. Engana-se quem imagina como destituídas de poder e influência as classes sociais e as frações das elites políticas que atuaram decisivamente em favor do sucesso eleitoral da candidatura Bolsonaro. Elas não só garantiram sua presença dominante na sociedade como expandiram em muitas vezes seu poder, removendo obstáculos institucionais que travavam a aceleração capitalista por meio das reformas na legislação protetora do trabalho e da remoção das agências de proteção ao meio ambiente deixando-o a mercê das investidas do agronegócio, hoje o carro-chefe do capitalismo brasileiro.
A coalizão responsável pela vitória
eleitoral de Bolsonaro, embora não disfarce seu mal-estar com o estilo
truculento e grosseiro na presidência da República, segue perfilada a ele em
razão de encontrar nele as possibilidades de realização do seu antigo projeto
de submeter a sociedade à lógica de um capitalismo sem freios sociais e
políticos. No caso, é preciso corrigir a postura dos que concebem o Centrão
como um setor inarticulado de políticos à deriva, disponíveis a quem os
agraciar com benesses e prebendas. Na verdade, bem mais que isso, esse bizarro
agrupamento político é constituído por setores retardatários do capitalismo
brasileiro que visam sua conversão, pelas vias do Estado, em potentes players
do mundo dos negócios, como ilustra, entre tantos outros, a trajetória de
Ricardo Barros, expoente do Centrão, líder do governo na Câmara dos Deputados que
descobriu o filão da indústria de medicamentos quando esteve à testa do
Ministério da Saúde.
Assim, o amálgama que suporta o atual
governo se constitui a partir dos grossos interesses já existentes e dos
futuros que medram a partir de políticas de Estado que viabilizam sua projeção,
casos conspícuos os negócios da saúde e da mineração, essa última bafejada pelo
garimpo ilegal em regiões de fronteira amparado por políticas governamentais
que destituem de poder os órgãos de proteção ambiental. Tal armação se encontra
escorada em apoios de setores fundamentalistas de cultos religiosos, alguns
agentes de prósperos negócios capitalistas, e numa escória que se organizou em
milícias acumpliciadas a chamada banda podre do aparelho judicial que mantém
sob vassalagem vastos territórios das periferias de grandes metrópoles, como no
caso do Rio de Janeiro.
Derrotar essa mal-arranjada geringonça em
que se apoia o governo Bolsonaro reclama um trabalho de Hércules das forças
democráticas, ainda dispersas e sem projeto comum, como se estivesse na
expectativa de que o governo venha a se se arruinar por suas próprias obras. A
gravidade da hora presente reclama ações, procrastina-las a pretexto de que
ainda estamos distantes da sucessão de 22 somente incentiva a fragmentação do
campo democrático, alimentando pretensões presidenciais no seu interior que
minam as possibilidades da sua concretização. Para que haja ação é necessário
um ator, individual ou coletivo, e o mais apto para deslocar os males que nos
afligem será aquele capaz de reunir todos os que querem ver pelas costas o
malsinado governo que aí está.
Em política, o tempo, com frequência, é uma
variável decisiva, e não se pode permitir que ele se esvaia das nossas mãos.
Para a conformação do ator democrático o tempo é o de agora com a exposição
pública da perversa política do governo para o enfrentamento da pandemia, tal
como evidenciada no curso da CPI que se dedicou ao tema aos olhos de todos,
mais uma intervenção ruinosa que se soma aos desastres ambientais, ao abandono
das instituições científicas, das educacionais e culturais e de tudo que
guardava a promessa de nos fazer uma nação mais justa e menos desigual.
Se for o caso, podemos esperar, mas se
formos bem-sucedidos agora, na elaboração do ator que agirá em nosso nome, pode
ocorrer que se encontre modos mais breves que nos aliviem da insuportável carga
que pesa sobre nossos ombros.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
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