O Estado de S. Paulo
Dizer que este é um país mais racista que
os Estados Unidos e a África do Sul é um disparate que chega a ser cômico.
Faz anos que venho observando nos meios
acadêmicos do Primeiro Mundo, com alguns coadjuvantes entre nós, um disparate
que chega a ser cômico: o de que o Brasil é um país mais racista que os Estados
Unidos e a África do Sul. Haverá nisso o que os especialistas em Relações
Internacionais chamam de “soft
politics”, quer dizer, um país a exaltar sua própria beleza com o
objetivo disfarçado de ressaltar a feiura de outro? Não sei; não digo que sim
nem que não.
Relações inter-raciais não são minha área de estudo, mas hoje resolvi arregaçar as mangas para não esquecer alguns fatos e episódios que há tempos guardava na memória. Decidi remontar ao primeiro trabalho que publiquei, um texto que redigi para o programa de mestrado em Ciência Política na Universidade da Califórnia, já lá se vão várias décadas. Não me lembro do título, mas posso imaginar que era ruim e muito mal escrito. Saiu em português em 1965, na revista Cadernos Brasileiros. Sugiro, no entanto, que comecemos por uma distinção. A notável ascensão social dos negros nos Estados Unidos deve-se evidentemente à expansão de oportunidade e ao vertiginoso enriquecimento do país nas últimas três décadas do século 19, além da excepcional qualidade de seu sistema de ensino, coisa que ninguém contesta. Esse conjunto de fatores possibilitou não só a referida ascensão, como a redução das diferenças de remuneração por trabalho igual. A chamada “ação afirmativa” não me parece ter tido o forte efeito positivo que lhe é atribuído; não me surpreenderei se ocorrer no Brasil, porque são situações muito diferentes. Tais diferenças resultam de fatores econômicos, do sistema de ensino e de outros fatores; não é isso o que entendo por racismo.
Por racismo entendo o fato, facilmente
perceptível nos Estados Unidos, de praticamente todo episódio ou questão
pública ser apreendida e interpretada por um único prisma: o da raça. Único e,
mais, num clima de azedume que beira o incompreensível. Darei algumas voltas em
torno deste tema, mas, antes, permitam-me evocar um pouco a história dos dois
países.
Um chavão que nós mesmos adoramos martelar
é o fato de nossa abolição ter acontecido uma geração inteira após a dos
Estados Unidos. Verdade incontestável. Lembremos, porém, que a abolição
norte-americana dificilmente teria acontecido sem a guerra civil, um dos
confrontos mais sangrentos da História, se os números forem ponderados pela
população total. Guardo em minha estante o livro Political Life, de 1959, obra de
Robert Lane, um importante cientista político. Na página 13, ele faz a seguinte
observação: “Uma das condições que os Estados sulistas tiveram de aceitar para
serem reintegrados à União foi a 14.ª Emenda à Constituição, que garantiria
‘igual proteção (a todos
os cidadãos) conforme as leis’. Contudo, mal as tropas federais se
retiraram, já os sulistas (brancos)
puseram mãos à obra para impedir o exercício do sufrágio pelos negros, tarefa
facilitada pela apatia e falta de experiência política dos negros. Quando
necessário, os brancos sulistas recorriam à violência e à intimidação, muitas
vezes através da Ku Klux Klan, outras vezes por meio da persuasão, da fraude ou
da pressão social pura e simplesmente”.
Em 2015, fiz uma pesquisa com advogados de
todo o Brasil, mantendo a proporcionalidade em relação às cinco grandes
regiões. A certa altura, perguntei, na lata,
oferecendo só o “sim” e o “não” como alternativas de resposta: “O sr. considera
o Brasil um país racista?”. Imaginem o meu espanto ao constatar que 74% dos
entrevistados concordaram com a afirmação. Suponho que se referiam à pobreza e
à mencionada diferença de remuneração por trabalho igual, muito mais que ao
azedume na sociabilidade inter-racial. Esse fato motivou-me a conferir
diferenças de remuneração entre advogados e advogadas em vários países. Coisa
trabalhosa, já que muitos países não coletam essa estatística ou o fazem
segundo critérios diferentes. Casos nítidos e facilmente interpretáveis, só
encontrei dois: nenhuma diferença, França; e diferença meridianamente clara,
Estados Unidos, prejudicando as advogadas, segundo informações postadas no site
da American Bar Association (Ordem Americana dos Advogados).
Graças à minha profissão, tive o privilégio
de viajar diversas vezes à África do Sul e aos Estados Unidos. Uma de minhas
viagens à África deveu-se a um seminário acadêmico justamente sobre o tema que
estou discutindo, relações inter-raciais. Logo no início, um membro da nossa
“bancada” foi à lousa e despejou uma cachoeira de pesadas matemáticas sobre
miscigenação, remuneração, etc. Quando concluiu, o primeiro a comentar, um sul-africano,
saiu-se com esta: “Um país cujo racismo precisa ser demonstrado através de um
monte de econometria não me parece racista”.
Nos Estados Unidos, também vivi algumas
experiências pitorescas. Naquela época, dizia-se que a Califórnia era um paraíso
de paz racial, que lá era remota a chance de acontecer um riot (protesto violento)
semelhante aos que volta e meia estouravam em Detroit ou Chicago. No verão, a
universidade geralmente oferecia cursos curtos sobre métodos de pesquisa.
Inscrevi-me num deles e fui incumbido de aplicar questionários no bairro de
Watts. Deus é grande. Consegui picar a
mula antes de ser atingido por alguma pedrada ou tiro. Tive
uma segunda oportunidade, em Detroit, no verão de 1967. Com a experiência
adquirida, em vez de assistir até o fim ao incêndio que atearam a um edifício,
peguei o primeiro ônibus que surgiu na esquina.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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