Folha de S. Paulo
A intervenção da Corte Suprema proporcionou
a mobilização da militância evangélica
Roe v. Wade, a
sentença da Corte Suprema dos EUA sobre o aborto, será derrubada pelo mesmo
tribunal antes de completar 50 anos. No aniversário de 40 anos daquela decisão,
a juíza Ruth Bader Ginsburg diagnosticou-a como um equívoco histórico. Ginsburg
foi uma voz icônica pelos direitos das mulheres e estava de acordo com os fins,
isto é, com a legalização do aborto. O ponto, para ela, era outro: o método.
O aborto é definido como um direito pela
quase totalidade das democracias europeias. Contudo, as nações europeias legalizaram
a interrupção voluntária da gravidez por meio do voto majoritário de seus
parlamentos, que refletiam a pressão de movimentos sociais.
Os EUA, como apontou Ginsburg, seguiram caminho distinto: Roe v. Wade cortou uma nascente mobilização pelo direito ao aborto —e semeou o terreno para um "movimento pela vida" que impulsionou as guerras culturais do último meio século.
No início da década de 1970, diferenças de
opinião sobre o aborto atravessavam os dois grandes partidos americanos. A
intervenção radical da Corte Suprema proporcionou uma plataforma de mobilização
para a militância evangélica, que costurou extensas redes sociais,
articulando-as nos níveis local e estadual.
O "movimento pela vida"
abrigou-se no Partido Republicano e, aos poucos, transformou-o por dentro. O
combate a Roe v. Wade converteu-se em marca dos republicanos, enquanto a defesa
da sentença tornava-se um traço fundamental dos democratas.
Cinco anos depois de Roe v. Wade, o
parlamento italiano aprovou a Lei 194, que legalizou o aborto numa nação
governada pela democracia-cristã e vincada pela tradição católica. De lá para
cá, não surgiu um amplo movimento social antiaborto na Itália.
É muito mais difícil engendrar mobilizações
em oposição a leis deliberadas pelos representantes eleitos que contra uma
arcana interpretação constitucional de um colegiado de juízes.
O método esculpe os resultados. Tribunais
constitucionais decidem sobre princípios, buscando soluções legais
paradigmáticas, enquanto parlamentos operam de modo pragmático, conciliando
pressões sociais contraditórias. Roe v. Wade extraiu do direito à privacidade
um quase ilimitado direito à interrupção da gravidez.
Na Europa, pelo contrário, o direito ao
aborto é circunscrito por uma proteção relativa da vida do feto. A Itália
coloca o limite nos primeiros 90 dias da gravidez. Em outros países, a
fronteira varia entre 10 e 16 semanas. Há casos em que a legislação exige
sessões de aconselhamento psicológico prévias à decisão final da gestante.
O "movimento
pela vida" nos EUA organizou suas campanhas de propaganda ao
redor das imagens e sons de abortos tardios. A estratégia abriu-lhe as portas
para audiências que ultrapassam largamente o núcleo militante cristão.
Paulatinamente, a promessa de indicar juízes conservadores —e dispostos a
reverter Roe v. Wade— passou a figurar com destaque nas campanhas presidenciais
republicanas.
Assim, a composição da Corte Suprema
tornou-se foco da concorrência entre os partidos —e o próprio tribunal começou
a refletir a cisão político-partidária.
Militantes tendem a perfilar-se atrás de
princípios absolutos: o "direito do feto à vida", de um lado, e o
"direito das mulheres ao seu corpo", de outro. Na Europa, movimentos
feministas contestam os limites temporais à interrupção da gravidez. Nos EUA,
movimentos evangélicos almejam a proibição geral do aborto. As guerras
culturais são arenas de insolúveis conflitos dogmáticos, como os que agora se
travam no Brasil.
A maioria das pessoas raciocina sob
premissas diferentes, que possibilitam intercâmbios e conciliações. Os debates
parlamentares, apesar de tudo, espelham essas abordagens mais matizadas. É por
isso que a derrubada do veredito de 1973 não significa, necessariamente, um
retrocesso histórico.
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