domingo, 5 de junho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Combustíveis viraram obsessão para Bolsonaro

O Globo

É tensa a relação entre governo e Petrobras. Enquanto a estatal, sujeita ao mercado, tem de manter vida independente do acionista majoritário, todo governo tenta usá-la como instrumento de política pública. É o que faz o presidente Jair Bolsonaro, na cruzada para que sua candidatura à reeleição não seja prejudicada pela alta dos combustíveis. Em estado hiperativo, ele troca presidente da estatal como se fosse zagueiro de futebol, a critica por “querer dinheiro do povo”, fala em privatizá-la, bufa, chia e esperneia. Tudo em vão, pois a causa da alta nas bombas está longe do alcance do Planalto.

A agressão da Rússia à Ucrânia provocou um choque no mercado global, trouxe volatilidade a preços e estoques no mundo todo. As reservas brasileiras dão para menos de 40 dias de consumo. Nos Estados Unidos, estão no ponto mais baixo desde 2008. Na Europa, no menor nível em dez anos. Restam Índia e Oriente Médio para compensar a escassez, a um custo de frete elevado, repassado ao preço. Contra essa realidade, Bolsonaro nada pode.

São risíveis as tentativas do governo para interferir na lei mais básica da economia, que relaciona preços ao equilíbrio entre oferta e demanda. Se Bolsonaro congelasse o valor nas bombas, a exemplo de Dilma Rousseff — que abriu na Petrobras um rombo de R$ 100 bilhões e empurrou à falência produtores de álcool —, afugentaria distribuidoras privadas que atendem a parcela expressiva do consumo e jamais teriam prejuízos vendendo aqui dentro a um preço abaixo do pago lá fora.

Caso elas saíssem do mercado de diesel, a Petrobras teria de repor os 30% atendidos por importações para evitar desabastecimento. Não seria viável. Em sua curta passagem de 40 dias no comando da estatal, o executivo José Mauro Coelho alertou o Ministério de Minas e Energia e a Agência Nacional do Petróleo (ANP) sobre o “elevado risco” de desabastecimento de diesel no segundo semestre, quando o Brasil colhe sua safra. O que mancharia mais a imagem de Bolsonaro? Combustível caro e disponível ou a falta dele?

Para atenuar o impacto da crise no bolso dos brasileiros, o governo tem pouco a fazer, na ausência de mecanismos que suavizem altas repentinas. O impacto da redução de ICMS que tramita no Congresso é incerto. Uma proposta de longo prazo seria criar um fundo de estabilização, financiado com dividendos e impostos pagos pela Petrobras ao Tesouro nos tempos de bonança, para subsidiar o litro na bomba. A alternativa imediata é um subsídio direto ao diesel, estimado em R$ 25 bilhões, criado por créditos extraordinários. Ele exigiria aprovação do Congresso, precisaria respeitar os limites impostos pelas normas fiscais e leis eleitorais. O Ministério da Economia, que nem queria ouvir falar no assunto, já se mostra menos reticente. Ao mesmo tempo, o governo quer que o novo comando da Petrobras mude a política de preços segurando reajustes até a eleição. Difícil funcionar numa empresa de governança rígida, que presta satisfação ao mercado acionário.

Ao assumir o Ministério de Minas e Energia, Adolfo Sachsida também defendeu a privatização, depois protocolou o pedido no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI). É inverossímil que se consiga vender uma empresa do porte da Petrobras de uma hora para outra. Vindo de Bolsonaro, o gesto serve apenas para ele poder dizer que não tem responsabilidade pela alta dos combustíveis. Nada mais eleitoreiro.

Sob controle do Centrão, fundo da Educação se torna foco de problemas

O Globo

Sai ministro, entra ministro, e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), controlado pelo Centrão, não se emenda. O escândalo mais recente é a tentativa de comprar 10 milhões de mesas e cadeiras escolares. Como mostrou reportagem do GLOBO, um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) apontou sobrepreço de R$ 1,59 bilhão nos valores, além de quantidade injustificável de mobília, quase o dobro da comprada no último pregão, em 2017.

O preço médio das propostas apresentadas pelas empresas estava 165% acima do registrado no sistema de compras do governo e 41% mais alto que os pesquisados na internet. A quantidade desprezava as regras do FNDE, que recomendam atrelar a demanda ao número de matrículas. A licitação foi revista após a blitz da CGU. Só com a redução do volume, obteve-se economia de 52%, segundo o relatório. Por enquanto, a compra está suspensa.

Orçada inicialmente em R$ 6,3 bilhões, a licitação de mesas e cadeiras chamou a atenção da CGU não apenas pelas quantidades e preços exorbitantes. Os auditores estranharam também a própria forma da licitação. O FNDE recebeu apenas oito propostas, número considerado insuficiente diante dos valores envolvidos. Uma das empresas interessadas, cuja sede ficava em condomínio residencial do Paraná, não tinha funcionários. Uma sócia da firma é filha de um empresário que também disputava a concorrência, artifício conhecido para aumentar o preço médio da oferta das firmas.

Presidido por Marcelo Ponte, indicado pelo Centrão, o FNDE tem sido sacudido por denúncias de corrupção e tráfico de influência. Ainda está mal explicada a história dos pastores lobistas, sem vínculo com o MEC, acusados de cobrar propina até em barras de ouro para liberar verbas a prefeituras. O escândalo contribuiu para derrubar o ministro Milton Ribeiro, sucedido por Victor Godoy, quinto na atual gestão.

Em abril, o TCU mandou suspender a licitação para compra de 3.850 ônibus escolares por suspeita de superfaturamento. De início, o fundo pretendia pagar R$ 480 mil por um veículo que, no mercado, custava no máximo R$ 270 mil. Em 2019, numa licitação do FNDE para comprar computadores, a CGU descobriu que somente uma escola em Minas Gerais receberia 30 mil laptops, 117 para cada aluno.

O presidente Jair Bolsonaro vive apregoando que em seu governo não há corrupção, enquanto a pilha de denúncias se avoluma. Ele costuma alegar que esses problemas foram detectados por órgãos do governo e que os valores não foram pagos. Mas isso não ameniza o descalabro no MEC, nem as tentativas de desviar dinheiro público, felizmente barradas pelos órgãos de controle. Não se pode ignorar que as distorções atrasam licitações e prejudicam os alunos, que ficam mais tempo sem computadores, transporte e itens básicos como carteiras escolares. Para não falar nas prefeituras, que precisam recorrer a pastores lobistas para obter os recursos a que têm direito. É o que dá envolver as verbas do MEC nas trocas de favores com o Centrão.

Movimento profundo

Folha de S. Paulo

Aumenta rejeição à intolerância e cresce apoio ao intervencionismo econômico

A agitação na superfície da política dificulta enxergar tendências, mas abaixo o movimento costuma ser lento e efetivo. Nesse registro, o Datafolha captou a transição dos brasileiros aptos a votar rumo a mais tolerância nos costumes e maior apoio à intervenção do governo na economia.

O questionário desenvolvido pelo instituto no início da década passada estimula o eleitor a posicionar-se sobre dicotomias. A homossexualidade deve ser aceita ou desencorajada? O governo é o maior responsável por investir na economia ou são as empresas privadas?

A bateria comporta dez antagonismos e abrange temas econômicos e comportamentais. De acordo com a composição das respostas, o entrevistado é alocado em uma de cinco posições da escala ideológica: esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita.

A trajetória desde 2013 corrobora a hipótese de que o brasileiro primeiro se aproximou de posições associadas à centro-direita e à direita —como o endosso à posse de armas e à livre competição empresarial— e mais recentemente se acerca de bandeiras identificadas com a centro-esquerda e a esquerda —como a valorização dos imigrantes e dos sindicatos.

Outro recorte permitido pela pesquisa mostra que posições liberais nos costumes voltam a ganhar força, enquanto na economia são impulsionadas em geral as opiniões iliberais, que chancelam maior atuação do Estado nos negócios.

A boa notícia é que se avoluma a maioria popular que rejeita a agenda de intolerância propagada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). Abraçar aberta ou veladamente discursos como o armamentismo e a homofobia vai custar votos a quem se arriscar nesse caminho.

Já o incremento das opiniões intervencionistas na economia deve ser visto com preocupação, uma vez que essas ideias populistas encontram ressonância em Bolsonaro, em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e na maioria que controla o Congresso, o chamado centrão.

A estagnação de uma década da economia, que obstruiu o caminho para a prosperidade de gigantescos contingentes situados abaixo ou pouco acima do limiar da pobreza, há de explicar ao menos parte do anseio para que um Estado interventor dê jeito na situação.

Já políticos profissionais, responsáveis e tarimbados não deveriam se esquecer das lições do passado recente nem das limitações impostas pelas contas públicas.

A reincidência na aventura do Estado demiurgo, que se pretende mais sábio que a sociedade nas decisões econômicas, está fadada a produzir um novo desastre e a prolongar o empobrecimento do país.

Água destratada

Folha de S. Paulo

Perdas na distribuição são mais uma evidência do atraso brasileiro no saneamento

O conhecido adágio de que o país melhora enquanto governantes dormem não se aplica, certamente, à distribuição de água para a população. Ainda há 35 milhões de brasileiros sem acesso a água tratada, e as perdas no sistema progridem mais rápido que a universalização desse serviço sanitário.

A estatística do desperdício está no último relatório do Instituto Trata Brasil: as perdas na distribuição alcançaram em 2020 o patamar escandaloso de 40,1%. São 7.800 piscinas olímpicas diárias de diferença entre o volume tratado e o consumido, suficientes para abastecer 66 milhões de pessoas.

O conceito de perda, nesse caso, abrange também água desviada, como em ligações clandestinas. A maior parte (60%), entretanto, corresponde a vazamentos em tubulações velhas submetidas a pressões inadequadas.

O mais alarmante não está no dado presente, mas na sua evolução: em 2016, as perdas estavam em 38,1%; houve piora de dois pontos percentuais em quatro anos.

Em paralelo, na trilha da universalização da água encanada avançou-se apenas 0,7 ponto percentual no mesmo intervalo, de 83,3% da população atendida para 84%.

O valor médio da perda oculta realidades díspares. Considerando o índice mundialmente aceitável de 25%, constata-se que um único estado se aproxima dele, Goiás, com 27,7%. Outros exibem desempenho calamitoso, como Amapá (74,6%), lanterna da pior região, Norte.

Algumas cidades se destacam por índices virtuosos, a demonstrar que o poder público tem, sim, meios de estancar a sangria de reservatórios. É o caso de Limeira (SP), com 18,9%, e de Campo Grande (MS), com 19,3%.

O desempenho do Brasil é ruim na comparação internacional, com base no critério de perdas de faturamento. Na América Latina, perde feio para a Bolívia (27%) e o Chile (31%), embora se saia melhor que Costa Rica (47%) e Uruguai (51%).

A meta oficial é reduzir o desperdício físico para 33% e a perda de faturamento para 25%. Há que enfrentar o problema em ambas as frentes, monitorando e modernizando a rede de distribuição, para não deitar fora água tratada e o gasto para tanto, mas também coibindo o desvio e gerando mais recursos para expandir o sistema.

Mantido o padrão atual de investimento, o país não cumprirá a meta de universalizar o acesso até 2033. Espera-se que o novo e meritório marco regulatório do saneamento básico cumpra a tarefa de elevar os aportes no setor.

Párias em seu próprio país

O Estado de S. Paulo

Desmonte de conquistas civilizatórias precede a ‘câmara de gás’ da PRF; há quem ganhe eleições defendendo que certos brasileiros não devem ter direitos

A cena de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, trancado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) tomada por gás lacrimogêneo, correu o mundo. Além da fumaça que saía do veículo, é possível ver a perna de Genivaldo para fora do carro, enquanto dois agentes da PRF diligentemente impedem que a porta se abra. Lá dentro, asfixiado, o homem que minutos antes havia sido abordado por andar de moto sem capacete, agonizava até a morte.

A abordagem policial, em Sergipe, desafia os adjetivos para retratar tamanha barbárie. À medida que as imagens da “câmara de gás” em que se converteu a viatura da PRF passaram a circular, uma onda de perplexidade e indignação espalhou-se pelo País. 

Enquanto a sociedade brasileira, atônita, acompanhava a reação pusilânime e cínica das autoridades, veio do Ministério Público Federal em Goiás (MPF-GO) a notícia de que a Direção-Geral da PRF, no início de maio, havia acabado com as comissões de direitos humanos no âmbito da corporação. Os procuradores recomendaram, então, o imediato restabelecimento das comissões, bem como a retomada da oferta da disciplina de direitos humanos nos cursos de formação e reciclagem de policiais rodoviários federais.

A iniciativa dos procuradores é louvável. Das forças policiais, espera-se efetividade técnica e operacional no combate ao crime, o que requer preparo para lidar com as mais variadas situações. Quanto mais clareza tiverem sobre o papel da polícia e os limites de sua atuação, melhor será o trabalho dos milhares de integrantes da PRF. Beira a ingenuidade, porém, imaginar que a mera presença em aulas de direitos humanos fosse capaz de mudar o comportamento dos agentes envolvidos na abordagem de Genivaldo.

Infelizmente, o Brasil tem assistido a uma espécie de ataque sistemático contra princípios basilares da vida em sociedade. Na esteira da polarização política, da disseminação de notícias falsas e do florescimento de discursos de ódio, ganhou força uma visão de mundo que se opõe à democracia e ao Estado de Direito naquilo que este último tem de melhor, isto é, a garantia de que o exercício do poder e os conflitos sociais serão regidos pela lei − e não pela violência.

O conceito de direitos humanos foi uma das primeiras vítimas desse verdadeiro desmonte de conquistas democráticas, base para o desenvolvimento de qualquer país civilizado. A partir de uma visão de mundo simplificadora e, por isso, completamente equivocada, disseminou-se a ideia de que defender direitos humanos seria o mesmo que defender bandidos ou ser complacente com a criminalidade. Por óbvio, nada mais falso, uma vez que a aplicação da lei, fundamento do Estado Democrático de Direito, prevê punição e prisão para quem comete crimes − da mesma forma que resguarda direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão. Entre eles, o direito à vida, à dignidade e a um julgamento justo.

Não é democrático nem de direito o Estado que nega a determinados cidadãos a condição de sujeito de direitos. Contudo, há tempos o Estado brasileiro faz essa discriminação, de que são testemunhas os milhares de presos sem julgamento, sem falar nos outros tantos que nem chegam a ser presos, pois são mortos em operações policiais truculentas. Tornou-se trivial considerar que há brasileiros (“bandidos”, como são chamados mesmo antes de qualquer julgamento) que não fazem jus a direitos fundamentais. Não são poucos os que até ganham eleições defendendo a execução sumária desses cidadãos – transformados em párias dentro de seu próprio país, posto que, na prática, não têm os mesmos direitos que seus concidadãos considerados “de bem”.

Não é preciso fazer “curso de direitos humanos” para saber que atirar uma pessoa no porta-malas de uma viatura e sufocá-la com gás não é um procedimento policial aceitável num país civilizado. Se os policiais se sentiram à vontade para fazê-lo à luz do dia, diante de incontáveis testemunhas, é porque se sentiram chancelados pelo Estado. Quando o chefe desse Estado é alguém que louva torturadores, tudo faz sentido. 

Uma reforma cada vez mais distante

O Estado de S. Paulo

Ao improvisar um teto para o ICMS sobre itens essenciais, de olho nas eleições, Câmara mostra falta de disposição para discutir uma reforma tributária ampla

Em mais uma demonstração do improviso e casuísmo que têm sido regra nos últimos três anos, a Câmara aprovou um projeto que estabelece um teto de 17% para as alíquotas de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que incidem sobre energia, combustíveis, transportes e telecomunicações. A proposta está agora no Senado, ambiente em que os governadores costumavam ter mais voz, mas tudo indica que ela será aprovada, talvez com algum tipo de compensação por potenciais perdas. A questão, não enfrentada pelos parlamentares, são os motivos que levaram os Estados a impor uma tributação tão elevada sobre estes bens e serviços, e as razões pelas quais ela deveria ser revista, temas que só poderiam ser devidamente tratados dentro de uma ampla reforma.

Não se discute que um ICMS de 30% sobre energia seja indefensável nem o fato de que, ao incidir “por dentro”, seu peso fica ainda maior aos consumidores finais, mas o fato é que ele é a principal fonte de recursos dos Estados. As alíquotas são, sim, elevadas, não porque os governadores sejam maus, mas porque cobrar o tributo sobre a conta de luz, combustíveis adquiridos nos postos e faturas de serviços de telecomunicações é uma das formas mais fáceis de contar com receitas certas e evitar a sonegação. Não é o tipo de tema que costuma gerar controvérsias administrativas e judiciais que demandem a consultoria de escritórios de advocacia especializados. Tampouco é preciso ser um especialista para saber que reduzir as alíquotas sobre bens essenciais, que alcançam uma enorme base de contribuintes, e tentar compensá-las por uma tributação mais pesada sobre artigos de luxo, como lanchas, jamais teria o mesmo efeito para os cofres públicos.

Em nenhum momento os parlamentares discutiram conceitos como eficiência produtiva ou justiça tributária. Não adianta atacar o imposto se os custos dos itens essenciais não estão sob controle do governo, ainda mais quando a tendência é que eles continuem a aumentar nos próximos meses. Experiências anteriores provam que qualquer desconto tende a ser apropriado ao longo da cadeia, enquanto a renúncia tem caráter permanente, assim como as despesas dos Estados com funcionários públicos. Caminhoneiros autônomos, para quem o diesel é insumo de trabalho, serão alcançados pelos eventuais efeitos de um ICMS mais baixo – se houver – tanto quanto donos de utilitários esportivos. Ao impor o teto para o imposto, portanto, a Câmara deu uma verdadeira lição sobre o que fazer para garantir que uma reforma tributária ampla não seja aprovada – rapidamente comprovada pela vergonhosa manobra dos senadores que impediram a obtenção de quórum mínimo para debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 110/2019, de autoria do próprio Senado, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa.

A reforma tributária é demanda antiga de especialistas e setores produtivos e envolve coordenação entre União, Estados e municípios. Um tema tão complexo naturalmente gera divergências, mas há algumas convicções compartilhadas por praticamente todos. A tributação precisa ser simples, não o manicômio que vigora no País; progressiva, com uma contribuição menor por parte dos mais pobres e maior dos mais ricos; equilibrada, sem onerar o consumo em demasia em detrimento da renda e da propriedade; e equânime, sem privilegiar setores escolhidos a dedo com regimes especiais e deduções legais.

Por fim, de forma realista, haja vista as deficiências crônicas do País em áreas como saúde, educação e segurança, o foco de uma verdadeira reforma não deveria ser a redução dos impostos, mas sim a revisão dos tributos que distorcem a atividade produtiva e impedem um crescimento econômico que tenha durabilidade de médio e longo prazos. É isso que a sociedade almeja do Legislativo e do Executivo há décadas. Quando os parlamentares e o governo não fazem seu trabalho, não é por desconhecimento. Quando pioram o que já era ruim e se limitam a oferecer migalhas em troca de votos, condenam o País a um recorrente voo de galinha. 

As muitas vítimas da Cracolândia

O Estado de S. Paulo

História da maioria dos dependentes embute a degradação de famílias que não têm o mínimo para viver

Por trás de muitos indivíduos submetidos à degradação física e emocional no umbral da Cracolândia há famílias inteiras que também precisam de amparo. O Estado e as organizações da sociedade civil não podem lhes faltar neste momento dramático de suas vidas. Os usuários de crack não são as únicas vítimas do flagelo da dependência química.

O Estadão publicou há poucos dias a história candente de uma mãe que luta arduamente para tirar sua filha do chamado “fluxo”, o movimento de pessoas que se concentram nas ruas da região central da capital paulista para consumir crack. Muitos anos após ela mesma ter conseguido se livrar do vício em álcool, crack e cocaína “com a ajuda de Deus”, Janaína Xavier, de 43 anos, hoje tenta salvar a própria filha, Aline Xavier, de 29 anos, da dependência que corrói não só o seu rosto jovem, mas suas perspectivas de futuro.

“Não tive aquele pulso de mãe para educá-la. Se eu fosse uma mãe mais presente, que não olhasse tanto para a droga e para o álcool, ela não estaria nessa situação”, disse Janaína ao Estadão. “Era a mãe drogada de um lado e a filha drogada de outro”, confessou a mulher, não escondendo a dor adicional causada pelo sentimento de culpa por ver a filha consumir drogas desde os 13 anos.

Decerto há exceções, mas a desestruturação familiar é a causa raiz da esmagadora maioria dos casos de dependência química. Famílias mais coesas, amorosas e com condições materiais mínimas para viver com dignidade são muito menos vulneráveis ao flagelo das drogas do que famílias desagregadas, por quaisquer razões. Um estudo de 2019 realizado pela Unidade de Pesquisas de Álcool e Drogas (Uniad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) revelou que 80% dos dependentes químicos que frequentam a Cracolândia abandonaram suas casas. Os especialistas apontam que conflitos familiares são a principal razão alegada pelos usuários para justificar sua presença na região.

“Muitas vezes, a família interpreta que apenas o usuário é o problema e prefere não tratar a dinâmica familiar. Com isso, ela os mantém a distância, com visitas esporádicas”, disse ao jornal Maria Angélica Comis, coordenadora do centro de convivência É de Lei. A constatação dá a dimensão do desafio de pôr fim ao flagelo da Cracolândia, que há décadas segue como uma chaga aberta no coração da cidade mais rica da América Latina.

A Cracolândia tem sido tratada como uma questão eminentemente criminal. Não há dúvida de que a repressão ao tráfico de drogas é necessária, mas é fundamental que os agentes de segurança nas ruas – orientados por uma compreensão humanista que deve cobrir toda a cadeia de comando – saibam muito bem distinguir traficantes e dependentes químicos. Na maioria das vezes, estes últimos são tratados como criminosos, não como doentes.

De forma mais ampla, é dever dos governantes nas três esferas administrativas, criar, no limite de suas responsabilidades, condições para reduzir o número de brasileiros que vivem em condições miseráveis. Não raro, muitos daqueles conflitos familiares que levam os usuários à Cracolândia têm origem na falta do básico para uma vida digna dentro de casa.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Graças a Deus o armamentismo e a intolerância de Bolsonaro estão tendo menos adeptos.