O Estado de S. Paulo
Livro traz depoimentos de protagonistas da gestão econômica no pós-ditadura militar e inspira o melhor elogio à persistência no rumo certo
Entre deslizes e alguns solavancos, há
áreas nas quais o Brasil efetivamente conquistou avanços desde a
redemocratização. A realidade dos enormes e permanentes desafios acaba por
ofuscar o olhar para acertos de importantes passos dados, como a estabilização
da moeda, o controle da inflação, o aumento de reservas internacionais, além de
uma ampla agenda reformista que, aos poucos, vem sendo implementada. Como
pontua Edmar Bacha, essas conquistas “não deixam dúvidas sobre o quanto o País
avançou no exercício da política econômica”, ao mesmo tempo que “revelam também
o quanto falta fazer”.
Essa observação está no prefácio do livro A Arte da Política Econômica: Depoimentos à Casa das Garças, organizado por José Augusto C. Fernandes, do qual tenho a honra de participar. A obra, a ser lançada dia 16/8 na Livraria da Travessa Iguatemi (SP), reúne depoimentos de 30 protagonistas da gestão econômica no Brasil no pós-ditadura militar, evidenciando o valor do percurso na construção do rumo certo.
No intervalo das últimas décadas, foi
possível deixar para trás algumas das mais anacrônicas disfuncionalidades que
emperravam, oneravam e tiravam eficiência da máquina pública. Se hoje o País
ainda desperdiça tanta energia e recursos para que o setor público cumpra sua
missão de perseguir o bem comum, a leitura dos diversos depoimentos evidencia o
quanto já foi possível avançar e aquilo que ainda precisamos superar.
O livro mostra bem o diferencial de uma
construção essencialmente virtuosa, embora por vezes atravessada por passos
erráticos e reticentes, mas, sem dúvida, conducente a patrimônio cumulativo que
nos distancia daqueles tempos que, sob o olhar contemporâneo, mais parecem de
irrealismo fantástico insustentável. O depoimento de Maílson da Nóbrega, por
exemplo, demarca bem de onde partimos e as lições que balizam o presente e
inspiram o futuro.
Como recorda, na década de 1980, durante a
era de hiperinflação e da crise da dívida, “não sabíamos medir déficit público”,
havia um “relacionamento disfuncional entre o Banco do Brasil (BB), o Banco
Central (BC) e o Tesouro Nacional” e, “a rigor, não havia um órgão que
exercesse as funções típicas do Tesouro”. Para os atuais leitores, decerto
parece jurássico que, como se ressalta, “quem executava o Orçamento da União
era um departamento do BB. A estratégia e a execução das tarefas ligadas à
dívida pública eram de uma gerência do Banco Central”. Ainda mais: o BC tinha
“funções de fomento”, incluindo uma “diretoria de crédito rural e
agroindustrial”; e o BB “era também uma espécie de Secretaria de Comércio
Exterior, através da Cacex”.
Tal descrição daquele tempo histórico nos
ajuda a aquilatar os patamares que, desde então, conquistamos, além de ensejar
ânimo para o muito e o urgentíssimo que ainda precisamos fazer. Não à toa,
destacando o valor do percurso sob horizonte democrático-republicano, Pedro
Malan observa, no posfácio, que, das várias definições de política, a que mais
o “tocou não é a que a associa à ‘arte do possível’, senão a que se refere à
arte de tentar tornar possível amanhã aquilo que hoje parece difícil ou
impossível”.
Ao listar os grandes desafios cujo deslinde
demanda engenho e arte, Malan cita o imprescindível “diálogo entre passado e
futuro”; o pragmatismo de “combinar sonhos com alianças e ações eficazes”; a
compreensão da lógica temporal dos processos, que repele voluntarismos; a
necessidade de consideração do contexto global; e a importância de um
“informado debate público”.
Este último ponto, aliás, é recorrente. Ana
Paula Vescovi fala dos desafios tanto para “colocar o Espírito Santo de pé”
quanto para aprovar, na dimensão federal, o Teto de Gastos, a Regra de Ouro e
buscar fazer andar as reformas estruturantes: “É preciso convencer, é preciso
explicar, chegar até as pessoas e criar uma conexão com o futuro”.
O acervo da caminhada reúne, ainda,
conquistas basilares como o fim da conta movimento, criação da Secretaria do
Tesouro, Plano Real, Lei de Responsabilidade Fiscal, modernização do BC, entre
outras. Contudo, como se sabe, a história não tem fim em seus desafios e
oportunidades. Recorrendo à sabedoria de Marcílio Marques Moreira, também
compartilhada no livro, “a atualidade exige três virtudes proféticas: a
primeira é saber reconhecer a realidade; a segunda é ter a capacidade de
observar o erro e pedir desculpas por ele; a terceira é não perder a esperança.
Pois acho que, apesar da eterna mania de achar que vai fracassar em tudo, o
Brasil ainda mantém radiosa esperança no futuro”.
À luz desse contexto e inspirados pelo
mapeamento da caminhada, precisamos aprofundar e acelerar os passos neste
percurso. Tal movimento implica desde as reformas estruturantes, passando pelo
incremento da lógica republicana em nossas instituições, como na questão
orçamentária, até a agenda de políticas públicas e arcabouços jurídicos que não
só permitam a superação de dívidas e contingências incompatíveis com a
cidadania no País, mas também nos habilitem a ocupar um lugar na vanguarda da
nova fronteira que a humanidade vem abrindo no século 21. Isso tudo em
constante dialética com aprendizados, acertos e erros que conectam o passado e
o presente com ensaios de futuro. Neste caminho, A Arte da Política Econômica é
obra que inspira o melhor elogio à persistência no rumo certo.
*ECONOMISTA, PRESIDENTE-EXECUTIVO DA IBÁ, MEMBRO DO CONSELHO CONSULTIVO DO RENOVABR, FOI GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO (2003-2010/2015-2018)
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