quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Ricardo José de Azevedo Marinho* - Casa-Grande & Senzala no Pós-Segunda Guerra Francês

Aqui está uma bela obra sobre Gilberto Freyre oferecida às leitoras e leitores pela historiadora Cibele Barbosa, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco do Recife. Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França é um livro chave para compreender a riqueza das relações intelectuais que marcaram o período 1950-1970 entre a França e o Brasil e não só. O livro é fruto da sua tese de doutorado defendida em 2011 perante a Universidade de Paris-Sorbonne e vencedor do 1º Concurso Internacional de Ensaios - Prêmio Gilberto Freyre 2020-2021.

A riqueza da obra aparece antes de tudo no lugar dado pela historiadora a abordagem que situa a grande obra de Gilberto Freyre na diversidade do pensamento social brasileiro. Mas a sua principal fortuna está na descrição da rede de sociabilidade estabelecida entre Gilberto Freyre e os intelectuais franceses como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Roger Bastide entre outros que saudaram a moderna escrita da história. Ao conhecerem a obra de Gilberto Freyre publicada no Brasil em 1933, Casa-grande & senzala é uma revelação para os intelectuais franceses que notavelmente integraram essa elaboração da formação da sociedade brasileira, essa civilização em seus conhecimentos da história. A recepção da obra de Gilberto Freyre tem como ponto de partida trocas intelectuais com os franceses.

No prefácio de Lucien Febvre a sua obra-prima na primeira edição francesa de 1952, ele revelava uma ironia fina ilustrando que o livro devia ser lido observando-se que o Brasil é uma terra de histórias podendo ser confrontado com as da Europa, só que naquele momento a comparação teria como base o modo pelo qual cada sociedade lidava com a relação entre diferentes grupos étnicos e culturais. Desse modo, a Europa daquele tempo terminava por ser descrita, numa forma própria à Rabelais (que Mikhail Bakhtin apresentou), como obcecado pela possibilidade de se construir um ideal de civilização incorporadora, visto que como dirá Febvre, “Agora, o branco se aflige. Tateia. Hesita. E, prisioneiro de sua reverência por tudo aquilo que pensou, construiu, inventou e realizou, não consegue oferecer a esses homens revoltados contra uma civilização da qual se sentem estrangeiros outra coisa senão invenções de branco, criações de branco que ele insiste em chamar de 'progresso'. Panem et circenses!”

Esta tradução, publicada sob o título de Maîtres et esclaves: la formation de la société brésilienne em 1952 na famosa coleção La Croix du Sud dirigida por Roger Caillois é devida ao filho de Xangô Roger Bastide que conhecia bem o Brasil. Em 1938, Roger Bastide saiu de França para lecionar na nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo, onde Fernand Braudel também lecionaria. A partir daí, o Brasil é reconhecido pelos franceses como uma terra de história.

Mas o trabalho de Gilberto Freyre também deixou obviamente a sua marca em outros intelectuais como Georges Gurvitch que orientou as teses de doutorado de Roger Bastide, Jean Pouillon e Jean Duvignaud, bem como em Roland Barthes.

Quatro anos depois, em 1956, a obra de Gilberto Freyre esteve no coração de uma conferência de Cerisy. A questão da racial no ambiente do pós-segunda guerra e de reposicionamento do tema nas democracias foi então debatido nessa comuna francesa e essas discussões também animaram a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Em França surge então a questão do império colonial nascido com Napoleão, particularmente no continente africano, estando a experiência da Indochina na Ásia longe de resolução. E a questão do império colonial francês na África é então objeto de controvérsias entre os atores da vida política francesa por conta da comparação também com a dos impérios ibéricos. Um conceito de Gilberto Freyre que povoou as mentes francesas foi o de lusotropicalismo. Com isso a recepção da obra de Gilberto Freyre chegou para além da França na África, onde a revista parisiense Présence Africaine publicou, em outubro-novembro de 1955, um artigo do ativista angolano Mário Pinto de Andrade: “O que é o lusotropicalismo?" O futuro presidente do Movimento Popular da Libertação de Angola (MPLA) critica a mobilização deste conceito pelos integrantes da ditadura portuguesa de Salazar. Os ativistas do Congresso de Escritores e Artistas Negros realizada em Paris, no anfiteatro Descartes da Sorbonne, por iniciativa do senegalês Alioune Diop e da revista Présence Africaine vão se opor a essas e outras apropriações de Gilberto Freyre.

Mas não há duas leituras da recepção da obra do nosso gênio da raça: a de Casa-Grande & Senzala, que fascinou os historiadores Lucien Febvre e Fernand Braudel e que se difundiu entre o pensamento social francês, graças a Roger Bastide, professor na Sorbonne desde 1958; a do “lusotropicalismo” de Salazar e os seus que os ativistas da revista Présence Africaine criticaram duramente em favor da democracia que marcou e marca a vida política francesa desde o nascimento do seu império colonial.

Nessas inúmeras qualidades, Cibele Barbosa traz uma nova perspectiva sobre este período das relações franco-brasileiras, franco-africanas e afro-brasileiras entre outras, e com este trabalho lança uma nova luz sobre Gilberto Freyre nos 90 anos de Casa-Grande & Senzala.

*Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

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