A riqueza da obra aparece antes de tudo no lugar dado pela historiadora a abordagem que situa a grande obra de Gilberto Freyre na diversidade do pensamento social brasileiro. Mas a sua principal fortuna está na descrição da rede de sociabilidade estabelecida entre Gilberto Freyre e os intelectuais franceses como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Roger Bastide entre outros que saudaram a moderna escrita da história. Ao conhecerem a obra de Gilberto Freyre publicada no Brasil em 1933, Casa-grande & senzala é uma revelação para os intelectuais franceses que notavelmente integraram essa elaboração da formação da sociedade brasileira, essa civilização em seus conhecimentos da história. A recepção da obra de Gilberto Freyre tem como ponto de partida trocas intelectuais com os franceses.
No prefácio de Lucien Febvre a sua obra-prima
na primeira edição francesa de 1952, ele revelava uma ironia fina ilustrando
que o livro devia ser lido observando-se que o Brasil é uma terra de histórias
podendo ser confrontado com as da Europa, só que naquele momento a comparação
teria como base o modo pelo qual cada sociedade lidava com a relação entre
diferentes grupos étnicos e culturais. Desse modo, a Europa daquele tempo
terminava por ser descrita, numa forma própria à Rabelais (que Mikhail Bakhtin apresentou),
como obcecado pela possibilidade de se construir um ideal de civilização
incorporadora, visto que como dirá Febvre, “Agora, o branco se aflige. Tateia.
Hesita. E, prisioneiro de sua reverência por tudo aquilo que pensou, construiu,
inventou e realizou, não consegue oferecer a esses homens revoltados contra uma
civilização da qual se sentem estrangeiros outra coisa senão invenções de
branco, criações de branco que ele insiste em chamar de 'progresso'. Panem et
circenses!”
Esta tradução, publicada sob o título
de Maîtres et esclaves: la formation de la société brésilienne em
1952 na famosa coleção La Croix du Sud dirigida por Roger Caillois é
devida ao filho de Xangô Roger Bastide que conhecia bem o Brasil. Em 1938,
Roger Bastide saiu de França para lecionar na nova Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de São Paulo, onde Fernand Braudel também lecionaria. A
partir daí, o Brasil é reconhecido pelos franceses como uma terra de história.
Mas o trabalho de Gilberto Freyre também
deixou obviamente a sua marca em outros intelectuais como Georges Gurvitch que
orientou as teses de doutorado de Roger Bastide, Jean Pouillon e Jean
Duvignaud, bem como em Roland Barthes.
Quatro anos depois, em 1956, a obra de
Gilberto Freyre esteve no coração de uma conferência de Cerisy. A questão da
racial no ambiente do pós-segunda guerra e de reposicionamento do tema nas
democracias foi então debatido nessa comuna francesa e essas discussões também
animaram a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO). Em França surge então a questão do império colonial nascido com
Napoleão, particularmente no continente africano, estando a experiência da
Indochina na Ásia longe de resolução. E a questão do império colonial francês
na África é então objeto de controvérsias entre os atores da vida política
francesa por conta da comparação também com a dos impérios ibéricos. Um
conceito de Gilberto Freyre que povoou as mentes francesas foi o de
lusotropicalismo. Com isso a recepção da obra de Gilberto Freyre chegou para
além da França na África, onde a revista parisiense Présence Africaine publicou,
em outubro-novembro de 1955, um artigo do ativista angolano Mário Pinto de
Andrade: “O que é o lusotropicalismo?" O futuro presidente do Movimento
Popular da Libertação de Angola (MPLA) critica a mobilização deste conceito
pelos integrantes da ditadura portuguesa de Salazar. Os ativistas do Congresso
de Escritores e Artistas Negros realizada em Paris, no anfiteatro Descartes da
Sorbonne, por iniciativa do senegalês Alioune Diop e da revista Présence
Africaine vão se opor a essas e outras apropriações de Gilberto Freyre.
Mas não há duas leituras da recepção da obra
do nosso gênio da raça: a de Casa-Grande & Senzala, que fascinou os
historiadores Lucien Febvre e Fernand Braudel e que se difundiu entre o
pensamento social francês, graças a Roger Bastide, professor na Sorbonne desde
1958; a do “lusotropicalismo” de Salazar e os seus que os ativistas da
revista Présence Africaine criticaram duramente em favor da
democracia que marcou e marca a vida política francesa desde o nascimento do
seu império colonial.
Nessas inúmeras qualidades, Cibele Barbosa traz uma nova perspectiva sobre este período das relações franco-brasileiras, franco-africanas e afro-brasileiras entre outras, e com este trabalho lança uma nova luz sobre Gilberto Freyre nos 90 anos de Casa-Grande & Senzala.
*Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
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