Correio Braziliense
Militares ainda têm sintonia com aqueles que sequestraram Rubens Paiva. Mais ameaçador que isso, a maioria dos parlamentares não parece ter sintonia com os líderes que lutaram contra a ditadura
No evento para lembrar o 8 de janeiro, o presidente Lula disse "nós, democratas, ainda estamos aqui", mas depois de 40 anos de democracia, eles, os golpistas, também estão aqui: tanto militares que ameaçam de fora, quanto civis que enfraquecem a democracia por dentro. Apesar de nada ter a ver com os crimes do passado, a atual geração de militares ainda tem sintonia com aqueles que sequestraram Rubens Paiva. Mais ameaçador que isso, a maioria dos parlamentares não parece ter sintonia com os líderes que lutaram contra a ditadura desejando construir um futuro democrático para o país, os parlamentares de hoje apodrecem a democracia.
Ao assistir a Fernanda Torres recebendo o
prêmio de melhor atriz do ano no Golden Globe, vi Eunice e milhares de outras
mulheres que passaram pelo que ela sofreu: maridos, filhos, irmãos e amigos
desaparecidos. Lembrei de Dilma Rousseff e Miriam Leitão e de centenas de
mulheres que sofreram elas próprias prisão e tortura. Vi milhares de homens e
mulheres que sofreram durante a brutalidade ditatorial. Lembrei também dos
milhões que não perderam a vida, nem foram presos, mas atravessaram 21 anos da
história sem participação democrática, sem ver o país caminhar na direção do
desenvolvimento rico, justo, sustentável, distribuído, livre. Mas também
lembrei que já temos duas vezes mais tempo de democracia do que tivemos de
ditadura e ainda não enfrentamos as questões fundamentais para a construção do
Brasil que queremos e nosso potencial permite.
Não enfrentamos a questão militar: nossos
soldados ainda aprendem que nada daquilo ocorreu, ou o que ocorreu teria
sido necessário para salvar o país e que é sua obrigação patriótica, se
necessário, recusar resultados das urnas de eleitores equivocados ao escolherem
líderes políticos incompatíveis ou corruptos. Foi esse aprendizado que fez com
que, por pouco, não tivéssemos tido em 2023 outro golpe, repetindo 1964. Mas a
questão militar não é a única nem a mais forte ameaça à democracia: nossos políticos
civis e partidos não estão sendo instrumento de consolidação da democracia.
Imaginei o que Rubens Paiva e todos os outros
milhares de lutadores que deram a vida pensariam se assistissem como funciona
hoje o democrático Congresso Nacional, sem tutela militar, mas usando dezenas
de bilhões de reais do dinheiro público para atender a volúpia por voto ou
mesmo por aumento da fortuna pessoal. O que pensariam ao ter dado a vida por
uma democracia que, no lugar de eliminar, ampliou privilégios, mordomias,
vantagens; aumentou a extensão, o tamanho e a tolerância com a corrupção, ao
ponto de a honestidade passar a ser motivo de galhofa.
Foi importante acabar com a censura que
impedia escrever e publicar livremente, mas, depois de quase meio século, a
democracia não eliminou a mais absoluta forma de censura que pesa sobre os 10
milhões de brasileiros adultos analfabetos, incapazes até de reconhecer a
própria bandeira; aumentamos o número de universitários, mas pouco fizemos para
universalizar a educação de base, não construímos um sistema nacional de
educação de base com a qualidade e equidade necessárias ao progresso econômico
e à justiça social. Foi fundamental abrir as cadeias, mas, para justificar a
democracia, é preciso também derrubar os muros dos condomínios. A partir de
1990, reduzimos a penúria com transferências de renda mínima e com o SUS, mas
até hoje não definimos uma estratégia para quebrar a obscena concentração de
renda e abolir a vergonha do quadro de pobreza. Em 1994, conseguimos construir
uma moeda estável, mas até hoje não conseguimos equilibrar nossas contas
públicas devido ao corporativismo, ao imediatismo, à demagogia, à
irresponsabilidade e à falta de espírito patriótico.
Fernanda Torres e Walter Salles nos despertam
para o que sofremos simbolizado no Rubens, o quanto lutamos simbolizado na
Eunice e o quanto ainda estamos devendo a eles e a todos os outros que lutaram
pela democracia. Eles nos fazem gritar que "ainda estamos aqui", mas
não estamos dizendo "para que estamos aqui": porque, para consolidar
a democracia política, é preciso consolidar a democracia social. Fernanda nos
deslumbra e orgulha, mas também nos alerta e provoca. O presidente Lula deveria
convidar os comandantes e cadetes das Forças Armadas para assistirem ao filme
Ainda estou aqui no cinema do Palácio do Planalto para superarmos os traumas do
passado, mas também convidar aos parlamentares para assistirem a filmes que
mostram o Brasil que estamos construindo: sugiro Grande Sertão, de Guel Arraes.
*Professor emérito da Universidade de
Brasília (UnB)
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