O Estado de S. Paulo
A melhor forma de navegar neste mar tão
revolto é ter objetivos claros neste mundo em mudança
O Brasil não vive uma crise. Vive muitas ao
mesmo tempo. Algumas são universais, como a climática e a do comércio
internacional, completamente revirado pelas iniciativas de Donald Trump.
É pretensioso supor que uma só pessoa consiga
abordar esse punhado de crises, em busca de caminhos para o País. No passado,
escrevíamos teses bastante gerais que eram uma espécie de roteiro de discussão
ou mesmo um estímulo à pesquisa.
A ordem internacional do comércio foi
subvertida por Trump. Isso é irreversível pelo menos durante seu mandato.
Que papel o Brasil pode encontrar neste novo arranjo em que todos se movem em busca de novos mercados? Há consenso de que devemos buscar também novos compradores para nossos produtos. O multilateralismo fortalecido pode ser uma resposta mundial a Trump.
É consensual, também, que devemos ter uma
posição serena na defesa da soberania, buscando pacientemente restaurar os
vínculos diplomáticos com os EUA.
Não é consensual tanto como a diversidade na
exportação, a possibilidade de o Brasil se abrir mais, simplificando sua
estrutura tarifária, reduzindo barreiras não tarifárias. Naturalmente, isso
deve ser feito com os devidos cuidados, mas não podemos mimetizar a visão
primária de Trump segundo a qual quem vende é sempre um explorador e que o
déficit comercial significa perdas. Ele considera que um déficit de,
suponhamos, US$ 1 bilhão é um dinheiro jogado fora, abstraindo a mercadoria
comprada que poderia ser mais cara se produzida internamente.
Outro aspecto da crise comercial que acaba
convergindo para a crise ambiental é o dos recursos brasileiros vitais para a
transição energética: sol, vento, água, florestas, minerais estratégicos, tudo
isso deve ser levado em conta numa reavaliação geopolítica do Brasil.
Já produzimos lítio no Vale do Jequitinhonha,
começamos a explorar terras raras com a Serra Mining em Goiás, temos uma
reserva de nióbio que pode abastecer todo o planeta – enfim, o Brasil tem um
papel central na superação do modelo poluidor e suicida.
No campo digital, a ideia de soberania tem
sido sintetizada no poder do Brasil de impor suas leis às big techs que aqui
funcionam. Mas ela precisa ser estendida à própria infraestrutura – já escrevi
artigos mostrando, por exemplo, a dependência que um setor da economia tem do
WhatsApp.
O Brasil é um importante espaço para data
centers, pois dispõe de energia e água, fatores consumidos em larga escala.
Pode oferecer isso às big techs, mas pode também construir os seus. próprios.
Já escrevi artigos mais amplos sobre os
passos para um nível de autossuficiência, já alcançado pela China, por exemplo.
Satélites, redes de alta velocidade, plataformas de cloud, tecnologias de
inteligência artificial e algoritmos – um caminho que permite não apenas
aplicar a lei às big techs, mas sobreviver a um possível boicote.
Toda essa temática precisa repercutir nas
eleições de 2026 e funcionar como estímulo para a escolha de pelo menos um
pequeno núcleo de parlamentares que aborde as necessidades do País.
A tendência à escalada da tensão com os EUA é
muito forte no campo político. Além das pressões de Trump no caso Bolsonaro,
ele assinou um decreto autorizando ações militares na América Latina para o
combate ao tráfico de drogas. Essas ações independem da autorização dos
governos. Provavelmente, começarão pelo México e virão para a Venezuela, onde o
governo de Nicolás Maduro foi considerado envolvido com o tráfico. Os EUA
acusam Maduro de participar de um cartel e de ter relações com outros dois:
Tren de Aragua e Sinaloa.
Essa disposição de combater o tráfico de
drogas em alguns casos, como o da Venezuela, converge com a vontade de derrubar
o governo. Um exemplo histórico é o de Manuel Noriega, no Panamá.
Qualquer operação na Venezuela terá
repercussão no Brasil, que, por sua vez, já foi instado por Trump a considerar
o PCC e outros grupos de crime organizado como terroristas.
O Brasil recusou, mas, de qualquer forma, o
decreto é o anúncio de problemas, pois a volta da guerra às drogas com tropas
americanas é um filme antigo, que saiu de cartaz por falta de eficácia.
A melhor forma de navegar neste mar tão
revolto é ter objetivos claros neste mundo em mudança.
O governo tem possibilidade de prosseguir até
2030. Tanto a serenidade como a definição de objetivos são fatores essenciais
nessa transição.
No momento, a polarização domina o cenário
político. Tem sido assim nos últimos anos. O dado novo é a entrada de um ator
muito mais forte que a extrema direita brasileira. Em outras palavras, um dos
decisivos temas é a relação Brasil-EUA.
A soberania é um tema inescapável. Mas ela
não pode ser apenas um discurso empolgado. Demanda serenidade, passos concretos
e uma visão de mais longo prazo. Isso tudo é artigo raro num processo
eleitoral. Mas, infelizmente, não temos mais tempo. É hora de nos reposicionarmos
no mundo.
Apesar de todos os obstáculos, é mais uma
oportunidade de o Brasil alcançar a grandeza sempre postergada em nossa
história.
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