Correio Braziliense
A prisão de ex-presidentes passou a compor o
noticiário como se fosse previsão de chuva. Por que tantos presidentes
transitam tão perto da ilegalidade?
No Brasil, a Presidência da República é a única função em que o ocupante sobe a rampa como monarca imaginário e, ao final, desce as escadas da história como investigado ou até como preso. É um cargo que oferece pompa, aparato oficial e plateia permanente, mas que devolve, inevitavelmente, o espelho mais cruel do poder: aquilo que o presidente fez quando acreditou que o país dormia. Aqui, o poder não transforma. O poder revela.
Da redemocratização para cá, sete presidentes chegaram ao topo do sistema político. Quase a metade terminou descobrindo o Estado sob outra perspectiva, a de quem conhece a burocracia não pela liturgia do cargo, mas pelas engrenagens do processo penal. Isso não é coincidência, não é azar estatístico e não é acidente histórico. É um ritual brasileiro que se repete com precisão irritante. Celebramos a posse como se fosse um épico nacional e assistimos ao pós-mandato como um inevitável acerto de contas.
Collor se tornou sinônimo de corrupção em um
país que ainda aprendia a respirar a democracia. Temer mergulhou em
investigações que lembravam enredo improvisado de thriller político. Lula
atravessou o turbilhão da Lava-Jato, foi condenado, preso, libertado e viu suas
condenações desmoronarem junto com a credibilidade daqueles que usaram o
Judiciário como palco. Bolsonaro levou o caos institucional ao limite. Tentou
golpe, desafiou decisões judiciais, acumulou descumprimentos, enfrentou prisão
preventiva e, agora, começa a cumprir sua pena definitiva após o trânsito em
julgado da condenação pela trama golpista.
São histórias distintas, mas o padrão é o
mesmo. Quando a cúpula desaba, cai levando junto a confiança do país inteiro. O
Código Penal, tão rápido para punir os vulneráveis, chegou ao andar de cima
empurrado pelas circunstâncias. Chegou tarde, com relutância, mas acabou
chegando. E, quando chega, não importa o tamanho do aparato que cercava o ex-presidente.
A queda iguala todos.
Ao longo desse enredo, o sistema de justiça
assumiu o protagonismo. O Supremo Tribunal Federal (STF) pauta a semana. A
Polícia Federal narra os fatos quase em tempo real. O Ministério Público produz
capítulos dignos de série documental. A mídia repercute, dramatiza, interpreta
e converte cada desdobramento em uma nova temporada desse ciclo político
interminável. Nada muda, apenas se atualiza o escândalo.
É dessa dinâmica que nasce a polarização
permanente. Para muitos, Lula foi vítima de perseguição disfarçada de
moralidade judicial. Para outros, Bolsonaro é alvo de uma caçada institucional.
E, para uma parcela crescente da população, nenhum deles tem credibilidade para
reivindicar qualquer tipo de absolvição moral.
O país se transformou em um território em que
a fidelidade importa mais do que a evidência. A narrativa virou arma política.
A prova virou detalhe. A sentença virou termômetro de torcida. Quando a justiça
passa a ser tratada como instrumento político, ela perde sua função de
pacificar e ganha a capacidade de incendiar.
A primeira prisão presidencial provocou
choque. A segunda dividiu o país. A terceira virou espetáculo absoluto. A
quarta não surpreendeu ninguém. A prisão de ex-presidentes passou a compor o
noticiário como se fosse previsão de chuva. O absurdo foi normalizado. Enquanto
isso, quem não carrega sobrenome conhecido continua sendo preso em massa, sem
destaque, sem defesa técnica, sem manchete e sem qualquer glamour de crise
institucional.
Continuamos sendo um país que pune tarde. O
sistema reage quando o golpe já foi tentado, quando o esquema já se consolidou,
quando o prejuízo já é irreversível. É uma justiça que chega tarde demais para
impedir e cedo demais para permitir que o país esqueça. A pergunta que evitamos
fazer segue ecoando: por que tantos presidentes transitam tão perto da
ilegalidade? Porque o poder ainda é visto como território livre. Porque quem
chega ao topo acredita que o Brasil é tolerante demais para se indignar e lento
demais para punir. A queda, por isso, deixa de ser apenas punição. Torna-se
exposição pública, vexame nacional e lição torta de moralidade.
Até que o país decida impedir, em vez de
remediar, vamos repetir essa coreografia desgastada. Presidente pela manhã, réu
pelo entardecer, assunto do noticiário à noite. Tudo isso compõe a rotina
política de um Brasil que conhece seus líderes por duas imagens opostas. A
oficial, com faixa e sorriso calculado. E a verdadeira, registrada em
processos, inquéritos e investigações.
*Cientista
política e doutora em sociologia pela UFSCar

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