Biden investe na imagem de sujeito decente, 'gente como a gente'
Patrícia Campos Mello | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - Em um vídeo exibido na última noite da convenção democrata, nesta quinta (20), Brayden Harrington, um menino de 13 anos, contou como o candidato à Presidência Joe Biden o ajudou a lidar com a gagueira.
“Biden me mostrou como ele sublinha seus discursos para ficar mais fácil de ler alto, e eu fiz a mesma coisa hoje”, disse o garoto, enfrentando a timidez e se esforçando para não gaguejar.
Brayden conheceu o candidato em um comício em fevereiro, e o democrata contou a ele como superou a gagueira quando era jovem. “Biden se importou comigo”, afirmou.
O episódio contrasta com a personalidade do atual presidente americano, Donald Trump. Em 2015, durante a campanha presidencial, o republicano zombou de um repórter que tinha uma deficiência física que o impedia de mover livremente os braços.
"Vocês precisam ver esse cara”, disse Trump à multidão, enquanto sacudia os braços, imitando o jornalista que sofre de uma doença congênita.
Após quatro dias de convenção, os democratas querem que o eleitor americano tenha ao menos uma certeza: Biden, o candidato do partido à Presidência, é um sujeito decente.
E esperam convencer os eleitores de que, neste momento de pandemia de coronavírus, recessão econômica e tensão racial, os Estados Unidos precisam de um líder que tenha decência e empatia.
“O atual presidente mergulhou a América na escuridão por tempo demais —muita raiva, muito medo, muita divisão”, disse Biden no discurso em que aceitou a indicação do partido, nesta quinta.
“Eu dou a minha palavra, aqui e agora: se vocês confiarem a mim a Presidência, eu vou tirar o melhor de nós, não o pior. Vou ser um aliado da luz, não da escuridão.”
Com apelos a moderados, republicanos que rejeitam Trump, jovens e eleitores de esquerda que resistiam ao veterano democrata, a campanha de Biden tenta passar a mensagem de que, neste momento, ele representa a normalidade, após quatro anos de intensa polarização sob um presidente movido a conflitos.
E que, como homem branco de 77 anos, será uma figura de transição para a próxima geração de líderes, personificados na vice Kamala Harris, 55, filha de um negro jamaicano e de uma indiana.
Bernie Sanders, candidato preferido por jovens e pela ala mais à esquerda do partido, reforçou a imagem de união em torno de Biden. “Essa é a eleição mais importante da história dos EUA; e Joe Biden é um ser humano honesto, decente e que demonstra empatia. Neste momento, o país realmente precisa disso.”
A ex-primeira-dama Michelle Obama, em seu discurso no primeiro dia da convenção, também recorreu a esses termos para descrever Biden. “Conheço Joe. É um homem profundamente decente, guiado pela fé.”
Ao longo dos quatro dias de convenção democrata, foi se pintando um retrato de Biden como um homem que é “gente como a gente”. Enquanto Trump é um filho de milionário que sempre circulou em carro com motorista, Biden é o sujeito que sempre anda de trem.
Ele não só é usuário do Amtrak, o sistema ferroviário dos EUA, há mais de 30 anos, para se locomover de Delaware para a capital, Washington, como também conhece e se importa com os funcionários do trem. Em vídeo, um deles contou como recebeu um telefonema de Biden após sofrer um infarto.
Trump poucas vezes demonstrou solidariedade às famílias das vítimas da pandemia de Covid-19. Nesta semana, questionado sobre o fato de mil americanos estarem morrendo por dia devido à doença, o presidente respondeu: “Eles estão morrendo, é verdade. É o que é”.
Em seu discurso, Biden fez questão de se dirigir diretamente às pessoas que perderam alguém para o coronavírus. E, mais uma vez, recorreu a sua experiência com o luto.
O democrata passou pela dor de perder um filho de 46 anos devido a um câncer no cérebro —Beau Biden, procurador chefe em Delaware e veterano da guerra do Iraque, morreu em 2015. O ex-vice-presidente já havia perdido, em 1972, a primeira mulher e a filha de um ano de idade em um acidente de carro.
“Quando fui diagnosticada com câncer, dois anos atrás, Joe me ligou”, contou a atriz Julia Louis-Dreyfus, que interpretava a vice-presidente Selina Meyer na série de TV "Veep" e foi a mestre de cerimônias da última noite da convenção. “A empatia de Biden é genuína. Ele entende a perda e o sacrifício.”
O democrata destacou em seu discurso o aniversário de três anos da marcha de neonazistas em Charlottesville, que deixou 30 feridos e um morto. E lembrou que Trump disse que havia pessoas boas e más nos dois lados —entre os supremacistas brancos e os manifestantes antirracismo.
O candidato democrata também se contrapôs à atitude do republicano diante dos protestos contra violência policial desencadeados pela morte de um homem negro desarmado, George Floyd, por um policial branco que o sufocou ao pressionar o pescoço da vítima com o joelho.
Trump mandou as tropas federais para reprimir os protestos e criticou os manifestantes. Biden contou ter encontrado a filha de 6 anos de Floyd no funeral do homem assassinado e se emocionado quando ela disse: “Meu pai mudou o mundo”.
A campanha de Trump vem batendo na tecla de que Biden está senil e que, na realidade, ele é um socialista radical. Um dos anúncios da campanha do republicano mostra imagens do adversário falando de forma enfática, com imagens vívidas, e a legenda: “passado”.
Depois, outras imagens mostram Biden engasgando ao enunciar frases e tropeçando nas palavras, com a legenda: “presente”. Um narrador, então, pergunta: “Aconteceu alguma coisa com Joe Biden?”. Um outro anúncio afirma que “a esquerda radical tomou conta do partido democrata e de Joe Biden”.
O discurso firme de Biden na convenção, sem hesitações, teve o objetivo de neutralizar essas críticas. E ao dar espaço a diversos moderados, como o ex-prefeito de Nova York Mike Bloomberg, e reservar pouco tempo a figuras mais à esquerda, como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, a campanha quis se vacinar contra a tentativa dos republicanos de assustar moderados.
Já Biden caracterizou Trump como um presidente que “não assume nenhuma responsabilidade, recusa-se a liderar, culpa os outros, aproxima-se de ditadores e estimula o ódio e a divisão”.
A aposta da campanha é pregar a união, dizendo que os americanos, democratas ou republicanos, são decentes. E que, portanto, deveriam votar no candidato que é decente.
“Caráter está na cédula eleitoral. Compaixão está na cédula. Decência, ciência e democracia estão na cédula eleitoral”, disse Biden. “Que a história diga que o fim deste capítulo de trevas na América começa aqui, nesta noite, em que o amor, a esperança e a luz se uniram para lutar pela alma desta nação.”
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