O Globo
Uma das perguntas mais comuns que nós,
jornalistas, recebemos é a respeito da isenção. Às vezes vem em tom provocador,
noutras como curiosidade — mas é uma pergunta perfeitamente natural. Uma
pergunta que, feita hoje em dia, necessariamente toca em questões bastante
profundas. Tanto a ascensão de movimentos populistas autoritários pelo mundo
quanto mudanças de linguagem criadas pela comunicação digital nos forçam a
voltarmos aos fundamentos essenciais do jornalismo.
O jornalismo existe para servir a democracia.
Uma coisa está amarrada à outra. Não há jornalismo real fora da democracia,
assim como não há democracia sem jornalismo. Muito cedo se compreendeu que,
para democracias funcionarem, era preciso uma estrutura de informação a
respeito do que se passa nas estruturas de poder e na sociedade, mas que não
fizesse parte do Estado. Tinha necessariamente de ser independente. Não poderia
estar vinculada a um grupo político.
O motivo, e já havia compreensão a esse respeito no século XVIII, é que, para votar, precisamos todos estar informados. Democracias funcionam bem quando há informação de qualidade e em quantidade à disposição de todos os eleitores. Informação sobre os fatos, mas também informação sobre os argumentos em curso no debate público. Quem é contra, quem é a favor, defende como suas posições?
Por isso, é sempre importante voltar aos
fundamentos. O jornalismo é uma instituição essencial da democracia. No jogo
político habitual, dos partidos que disputam poder, deve sempre estar de fora
como observador crítico. Não quer dizer sempre do contra em suas análises, mas
quer dizer sempre desconfiado.
Não há mistério por trás da ideia de
isenção jornalística. Outras profissões também exigem que as pessoas exerçam
desprendimento a respeito de suas convicções pessoais. O psicanalista precisa
deixar seu ego de lado ao ouvir quem está no divã. O advogado precisa deixar
seus sentimentos sobre um crime de lado ao defender seu cliente. O médico, o
padre, tantos trabalham separando crenças pessoais da atuação profissional.
Porque essa é a natureza da função.
A isenção, porém, vale para o jogo político
habitual. Porque, um degrau acima, o jornalismo tem lado — é o lado da
democracia. No momento em que se implanta, um governo autoritário tentará
controlar o que pode ser publicado. É por isso que autoritários prendem
jornalistas, matam jornalistas ou tentam controlar o jornalismo por ameaças.
Aliás, sintoma de autoritarismo é como o governante lida com a imprensa
crítica.
Benjamin Netanyahu, em Israel, quase partiu
as três principais redes de TV do país, argumentando que representavam
monopólios. Um grupo grande de jornais, lá, cedeu perante ampla verba de
publicidade. Na Rússia, jornalistas independentes são assassinados. Mesmo. A
toda hora. No Brasil, Jair Bolsonaro atua na base da intimidação direta a
repórteres que lhe fazem perguntas. É particularmente agressivo quando são
mulheres a perguntar.
Não é tão simples censurar a imprensa no
tempo da internet, mas a desinformação cumpre o mesmo objetivo. E o digital —
principalmente após o surgimento das redes sociais, que selecionam o que vemos
com base em algoritmos — é uma máquina que facilita à desinformação que se
espalhe.
Então, se democracias dependem de uma
população informada, quem atua para produzir e distribuir desinformação está
conscientemente atentando contra o regime. Desafios trazidos pela tecnologia
sempre fizeram parte da história do jornalismo. Para nossa geração, o desafio é
um só. Restabelecer, na sociedade, o predomínio da informação sobre os
falsários.
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