Lula sujeita a uso político as agências reguladoras
O Globo
Ao negociar escolha de diretores com
Alcolumbre, ele mina a independência essencial para o sucesso do modelo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguiu
a prática do antecessor, Jair Bolsonaro, de dar ao Congresso a prerrogativa de
indicar nomes para as diretorias das agências reguladoras. Para prestigiar o
senador Davi Alcolumbre (União-AP), favorito para comandar o Senado a partir de
fevereiro, o governo antecipou a negociação das indicações. Há 17 vagas a
preencher, e mais dez serão abertas em 2025. Com a decisão, Lula tenta melhorar
o relacionamento com o Parlamento, mas os efeitos da tentativa de pacificação
política serão deletérios.
As agências foram criadas na década de 90, na esteira da reforma do Estado nos governos de Fernando Henrique Cardoso. Privatizações, concessões e parcerias entre os setores público e privado exigiam independência nas instituições de regulação, tanto em relação ao governo quanto aos interesses empresariais. Dotados de mandatos fixos e não coincidentes com o calendário eleitoral, os diretores das agências têm a missão de assegurar a estabilidade nas regras em todos os mercados, sobretudo para os consumidores. Devem garantir que contratos, muitos deles de longo prazo e envolvendo cifras bilionárias, sejam cumpridos, independentemente de quem esteja no poder. Não chegou a ser surpresa que os investimentos e as chances de sucesso de políticas públicas aumentaram, desestimulando a prática de começar tudo do zero a cada quatro anos.
Na época em que o Executivo tinha mais poder
para obter apoio no Congresso, os ministérios faziam a maior parte das
indicações ao Senado, responsável pelas aprovações. Como defendeu em artigo no
GLOBO o jurista Caio Mário da Silva Pereira Neto, da Escola de Direito da
FGV-SP, critérios técnicos prevaleceram na maior parte das escolhas. Desde o
início houve tentativas de aliciamento, pressão por decisões, desrespeito de
pareceres técnicos e falta de reposição de pessoal. Com a alternância de poder
do PSDB para o PT, o perfil dos indicados mudou, mas não houve sobressaltos. Na
essência, o modelo se mostrou vitorioso.
É por causa desse bom retrospecto que
preocupa a erosão evidente na negociação entre Lula e Alcolumbre. A lógica das
indicações dos parlamentares é contrária à independência exigida pelos cargos.
Não se trata de acomodar aliados, premiar amigos ou agradar às empresas
interessadas. Para as agências terem chances mínimas de exercer sua função, as
escolhas devem seguir critérios técnicos. Nos currículos, é a trajetória
profissional que precisa ser o destaque, não a proximidade da política ou de
lobbies. Sem corrigir o rumo, as agências se tornarão idênticas a instâncias
governamentais, contrariando o pressuposto de autonomia.
Quem mais perde com o enfraquecimento são os
consumidores. As causas dos repetidos apagões elétricos em São Paulo estão no
sucateamento da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O quadro de
pessoal hoje é inferior ao de dez anos atrás (558 em 2024 ante 730 em 2014). Na
área da saúde, atualizações na regulação de preços de medicamentos seguem a
passos lentos. Na realidade das agências, faltam técnicos e diretores
competentes. Sobram descaso na recomposição de vagas e indicações políticas.
Nas negociações entre Lula e Alcolumbre, o principal tema está ausente: a
necessidade de resgatar o papel de instituição de Estado das agências. É
preciso mudar o critério de escolha dos diretores e recompor os quadros
técnicos.
Caso Gisèle Pelicot é inspiração para tirar
vítimas de estupro das sombras
O Globo
Submetida a abusos hediondos pelo ex-marido,
a francesa revelou sua força no julgamento que o condenou
No julgamento daquele que é considerado o
maior caso de estupro já ocorrido na França, um tribunal de Avignon condenou
Dominique Pelicot, de 72 anos, a 20 anos de prisão, pena máxima pedida pela
promotoria. Fez-se justiça. Ele foi acusado de arregimentar homens para
estuprar a própria mulher, Gisèle Pelicot, de 72, com quem foi casado durante
50 anos. Saiu preso, depois de se declarar culpado. Outros 50 réus que
participaram dos abusos foram condenados a penas de quatro a 18 anos. Ainda que
muitos tenham considerado brandas algumas punições, não há dúvida de que foi
uma decisão histórica, um marco na luta das mulheres contra o abuso. Gisèle,
que acompanhou o julgamento encarando os réus, afirmou respeitar a sentença e o
tribunal.
A vítima não tinha consciência de que era
estuprada, pois o marido a sedava e dopava. Chegou a imaginar sofrer de
Alzheimer ou outro mal. Somente em 2020 tomou conhecimento da violência a que
fora submetida ao longo de uma década. Dominique foi preso por importunação
sexual contra outras mulheres. Na investigação, a polícia encontrou em seu
computador 20 mil vídeos e fotos dos estupros coletivos — um crime muito maior.
Em maior ou menor grau, a violência contra
mulheres desafia autoridades no mundo inteiro. É difícil de combater, pois
costuma ficar fechada no ambiente doméstico. No Brasil, vive-se uma tragédia,
apesar das campanhas e dos movimentos para garantir os direitos femininos.
Ocorre no país um estupro a cada seis minutos, segundo o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. Entre 2011 e 2023, esses crimes cresceram 91,5%. Sem contar
casos de importunação e assédio sexual. E sem levar em conta que as
estatísticas oficiais, registradas em delegacias, são apenas uma fração do
total. Vítimas, especialmente menores, evitam delatar abusos por vergonha, medo
ou ameaças, muitas vezes de parentes próximos.
A coragem e a determinação de Gisèle depois
dos horrores que sofreu são inspiradoras. Ela é um exemplo para outras vítimas
de abusos. Poderia ter optado pelo anonimato, permitido pela lei em casos desse
tipo. Mas, a despeito das cicatrizes, fez questão de mostrar o rosto, de se
expor diante de um crime repulsivo. Pretendia que “a vergonha trocasse de
lado”, da vítima para o estuprador. “Queria que todas as mulheres vítimas de
estupro dissessem: ‘Se a senhora Pelicot conseguiu, nós também podemos’ ” , afirmou.
“Obrigado, Gisèle Pelicot. Por ter enfrentado
essa provação com a cabeça erguida em nome da justiça”, disse o presidente da
França, Emmanuel Macron. “Sua dignidade e coragem comoveram e inspiraram a
França e o mundo.” Ele tem razão. Depois do julgamento, de onde saiu sob
aplausos, Gisèle afirmou ter passado por uma “provação muito difícil”, mas
acrescentou que não se arrepende de tornar o caso público. Disse ainda que
travou essa batalha pelos filhos e netos. “Também penso nas muitas vítimas de
violência e nas histórias delas, que muitas vezes permanecem nas sombras.” Sim,
é preciso tirá-las das sombras.
Dino mantém conflito sem solução à vista
entre Poderes
Folha de S. Paulo
Ministro do STF suspende R$ 4 bi em emendas
parlamentares; Lula faria bem em dividir mais o governo com forças ao centro
Após um acordo entre governo e Congresso que
permitiu a votação apressada de um tímido e tardio pacote de contenção de
gastos, o ministro Flávio Dino,
do Supremo Tribunal Federal, determinou nesta segunda (23) a suspensão do
pagamento de R$ 4 bilhões em despesas incluídas por deputados e
senadores no Orçamento.
As razões são basicamente as mesmas que
embasaram decisões anteriores de Dino de teor semelhante —as chamadas emendas
parlamentares à lei orçamentária têm sido aprovadas sem
requisitos básicos de transparência e descrição de finalidade. Não
satisfeito, o magistrado mandou instaurar inquérito sobre a liberação dos
valores.
A aprovação
do pacote fiscal pouco ou nada alterou o ambiente de incerteza
econômica que elevou as cotações do dólar acima
dos R$ 6. Já a medida do ministro do STF prolonga
um conflito entre Poderes para o qual não há solução à vista.
É indefensável a pretensão dos congressistas
de impor gastos públicos, sempre em benefício de seus redutos eleitorais, sem
ao menos responder pela correta aplicação dos recursos. Isso não muda o fato,
porém, de que o governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
tem base partidária frágil e precisa de votos interesseiros para a aprovação de
seus projetos.
O Executivo vai sendo arrastado para a
contenda entre Legislativo e Judiciário —inclusive porque Dino é visto como
aliado fiel ao Planalto, por ter sido ministro da Justiça e ser propenso tanto
ao enfrentamento político como ao ativismo judicial.
As tensões não se limitam às emendas, cabe
lembrar. Neste ano, avançaram no Congresso projetos destinado a reduzir poderes
do STF, que incluíam desde normas meritórias como limites para as decisões
monocráticas até aberrações como conceder ao Parlamento a capacidade de rever
decisões da corte.
Bancadas conservadoras também ameaçaram com
retrocessos diante da perspectiva de o Supremo invadir a seara legislativa em
temas como aborto e drogas.
Magistrados também se aproximaram da politização em temas como revisões da Lava
Jato e regulação da internet.
Não é de hoje que Legislativo e Judiciário
avançam sobre espaços abertos por uma sequência de presidentes enfraquecidos ou
amparados por coalizões partidárias instáveis. Não é simples corrigir tais
desequilíbrios.
Dos ministros do Supremo, cujas decisões
precisam ser respeitadas, espera-se mais autocontenção; ao Congresso, que hoje
intervém sobre uma parcela exorbitante do Orçamento, cabe assumir maior
responsabilidade sobre a lisura das emendas.
Lula, eleito por margem mínima de votos, com
popularidade apenas razoável e sem dispor de uma bancada numerosa de esquerda,
faria bem em dividir mais o governo com as forças ao centro —às quais sua
administração reserva papéis secundários e condicionados a cargos e verbas.
Calor recorde não abala carvão na matriz
energética
Folha de S. Paulo
Consumo global do combustível cresce, com
incentivos até no Brasil; assim, ficará difícil manter meta do Acordo de Paris
O ano de 2024 ficará na história pelo
paradoxo de presenciar altas da temperatura global e da demanda por carvão
mineral, o mais nefasto combustível fóssil. Não espanta que caminhe de
comprovar-se o mais quente já registrado.
O programa de observação do clima Copernicus,
da União Europeia, já projeta que este ano desbancará 2023 como recordista do
aquecimento da atmosfera. Tudo indica, ainda, que será o primeiro de muitos com
termômetros marcando alta de 1,5ºC ou mais acima dos níveis pré-industriais.
Tal indicador foi a meta fixada pelo Acordo de
Paris, em 2015. Cientistas calculam que seria imprudente cruzar esse
Rubicão, sob pena de tornar mais frequentes os eventos climáticos extremos que
já flagelam populações —como as enchentes no Rio Grande do Sul, há nove meses.
Tendo em vista que descarbonizar a economia
mundial figura como objetivo desde a cúpula ambiental de 1992 no Rio, seria
esperado que estivesse em retrocesso a demanda por combustíveis fósseis
como petróleo,
gás natural e carvão. Não é o caso.
A Agência Internacional de Energia (AIE)
estima que a procura por petróleo seguirá em expansão, ainda que em crescimento
menos acelerado. Mais aquecida ainda se mostra a demanda por gás natural,
propagandeado como combustível de transição por sua queima ser algo mais
eficiente que a de outros fósseis.
Mas a pior notícia é a alta
do consumo de carvão, o mais poluente deles, que garante cerca de um
terço da eletricidade gerada no planeta, com China à
frente. A AIE anunciou neste mês que a demanda bateu recordes em 2024.
A resiliência dos fósseis está em franca
contradição com o dever de neutralizar emissões de carbono até 2050 para
cumprir o objetivo de Paris. É, portanto, fora de propósito investir em
infraestrutura de extração e distribuição para combustíveis condenados.
No Brasil, há contrassenso similar. O governo
Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
se divide em relação à exploração de petróleo na orla amazônica, enquanto o
Congresso envia à sanção presidencial um Programa de
Aceleração da Transição Energética que mal contempla a
descarbonização.
Num país que conta com uma das matrizes elétricas com menor emissão de gases do efeito estufa no mundo, a nova norma tende mais a fossilizá-la do que a seguir um caminho virtuoso. Seu fulcro está no gás natural, mas há benesses até mesmo para carvão mineral, evidenciando que lobbies setoriais e regionais falam mais alto a parlamentares que o bem-estar de futuras gerações.
Um curioso conceito de autonomia
O Estado de S. Paulo
Em aparente contradição, Lula da Silva
celebra Galípolo e louva a autonomia do Banco Central, deixando implícito
esperar um BC autônomo em relação ao mercado financeiro, e não a seu governo
O presidente Lula da Silva gravou um vídeo no
qual se regozija pelo presente que acredita ter dado ao Brasil. “Esse jovem
chamado Galípolo está assumindo a presidência do Banco Central” (BC), disse
ele, ao lado de um embevecido Gabriel Galípolo, que substituirá Roberto Campos
Neto a partir do início do ano que vem, e dos ministros da Fazenda, Fernando
Haddad, do Planejamento, Simone Tebet, e da Casa Civil, Rui Costa.
Obra do marqueteiro Sidônio Palmeira,
cotadíssimo para ocupar a Secretaria de Comunicação Social, a constrangedora
peça foi gravada no contexto de piora das expectativas sobre a economia
brasileira, em especial o dólar, que superou a marca de R$ 6,00 nas últimas
semanas e dá sinais de que assim permanecerá nas próximas em razão do
desarranjo fiscal.
Mas, se o vídeo era uma tentativa de acalmar
o mercado, Sidônio conseguiu, mais uma vez, produzir efeito oposto ao desejado.
“Eu quero que você saiba que você está aqui por uma relação de confiança minha
e de toda a equipe de governo, e eu quero te dizer que você será certamente o
mais importante presidente do Banco Central que este país já teve porque você
vai ser o presidente com mais autonomia que o Banco Central já teve”, afirmou
Lula da Silva.
Ora, não se pode ser mais ou menos autônomo:
ou o Banco Central é autônomo ou não é. Em segundo lugar, se é preciso gravar
um vídeo para reafirmar algo que a lei já prevê, é somente porque a autonomia
não parece assegurada. E, em terceiro lugar, seria importante entender o que
Lula da Silva entende por autonomia – e, sobretudo, em relação a quem o BC deve
ser autônomo, segundo seu pensamento.
Lula nunca escondeu o incômodo com o modelo
estabelecido em lei, que garantiu mandato fixo de quatro anos não coincidentes
com o mandato da Presidência da República. Não foram poucas as ocasiões em que
ele deixou claro o quanto lhe desagradava ter de lidar com Campos Neto, uma
indicação do ex-presidente Jair Bolsonaro.
E o contexto no qual Galípolo foi alçado ao
cargo não poderia ser mais adverso. Diante da piora do quadro fiscal, o Comitê
de Política Monetária (Copom) voltou a elevar a taxa básica de juros para
12,25% em dezembro e sinalizou que elevará a Selic a 14,25% em março.
Para Lula da Silva, é tudo culpa de Campos
Neto, que boicota as realizações de seu governo. Galípolo, no entanto, não
protestou contra a orientação futura dada por meio das atas das reuniões do BC.
Pelo contrário: até agora, fez questão de destacar seu apego à comunicação
oficial, o que, em tese, o colocaria em rota de colisão com Lula da Silva.
A resposta para essa aparente contradição
está no voto de confiança que o petista depositou no chamado “menino de ouro”
do BC. “Eu tenho certeza de que, pela sua qualidade profissional, experiência
de vida e compromisso com o povo brasileiro, certamente você vai dar uma lição
de como é que se governa o BC com verdadeira autonomia”, afirmou.
Sua esperança, portanto, não é que Galípolo
seja autônomo em relação ao governo, mas sim em relação ao mercado. Declarações
anteriores de Lula da Silva reforçam a impressão de que o petista tem a
expectativa de que o futuro presidente do BC não hesite em tomar decisões que
desagradem aos investidores – leia-se reduzir a Selic, ignorando a gastança do
governo e seus efeitos inflacionários.
Para não restar dúvidas sobre o que Lula da
Silva realmente pensa, basta observar o comportamento de algumas lideranças do
partido no Congresso. Ao jornal Valor, o futuro líder do PT na Câmara,
Lindbergh Farias (RJ), deixou claro que o partido mudará radicalmente de
posição em relação ao Banco Central. Isso acontece porque, segundo o deputado,
a partir de agora o PT terá influência “na política cambial, monetária e
fiscal”.
Se a orientação futura dada pelo Copom na
última reunião havia garantido algum alívio a Galípolo nos primeiros meses à
frente do BC, o vídeo de Lula da Silva não ajudou muito a expectativa de uma
transição suave após a saída de Campos Neto. A pressão mal começou, e resta
saber se o futuro presidente do BC sucumbirá ou resistirá a ela.
TST reforma a reforma trabalhista
O Estado de S. Paulo
Corte edita tese obrigatória que afrouxa as
regras para concessão de Justiça gratuita, colocando em risco a segurança
jurídica e o legado de queda do número de ações após a nova lei
O Tribunal Superior do Trabalho (TST)
afrouxou as regras para a concessão do benefício de Justiça gratuita. Os
ministros estabeleceram uma série de critérios mais brandos que só favorecem
uma das partes em um processo. E esses parâmetros extrapolam, e muito, as
hipóteses previstas na reforma trabalhista.
Em vigor desde 2017, a Lei 13.467 estabelece
que o juiz pode conceder o benefício, a pedido ou de ofício, a quem ganha
salário inferior ou igual a 40% do teto do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) – ou seja, até R$ 3,1 mil. Acima desse valor, o trabalhador deve
comprovar sua insuficiência financeira para arcar com as custas processuais.
Mas a maioria dos ministros do TST subverteu
recentemente a letra da lei durante o julgamento de um recurso. Eles entenderam
por bem ainda editar uma tese vinculante, de cumprimento obrigatório em toda a
Justiça do Trabalho, que determina que o juiz deve conceder automaticamente o
benefício àqueles para os quais antes ele tinha a faculdade de fazê-lo.
Os integrantes da Corte trabalhista definiram
também que basta uma mera declaração de pobreza daqueles que antes deveriam
comprová-la para que o benefício da Justiça gratuita seja concedido. E
decidiram que o empregador insatisfeito com o benefício dado à parte poderá
contestar a gratuidade, mas, com a inversão do ônus, ele terá de comprovar que
o trabalhador é capaz de bancar as custas.
Com uma canetada, os ministros ignoraram o
objetivo de deputados e senadores de conter a litigância aventureira na Justiça
do Trabalho. Antes da reforma, não havia risco algum para o trabalhador que
fazia pedidos extravagantes, caso saísse derrotado da disputa judicial. Era,
portanto, clara a intenção do legislador brasileiro de dar alguma racionalidade
ao direito processual trabalhista.
As mudanças que o Congresso discutiu e
aprovou, e o então presidente Michel Temer sancionou à época, fizeram com que o
número de processos caísse no Brasil, após anos de um volume assombroso de
ações ajuizadas. Com a imposição dessas três novas regras, o TST parece ter
decidido atropelar o Legislativo. Chamam a isso de jurisprudência, mas, na
verdade, trata-se de ativismo judicial.
Não é de hoje que os mecanismos inseridos
pela reforma na CLT para otimizar a Justiça do Trabalho vêm perdendo força. Em
2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia aberto a porteira para a volta
do crescimento do número de ações. Na ocasião, a Corte constitucional decidiu
que o trabalhador beneficiário da Justiça gratuita e derrotado em um processo
não é obrigado a pagar honorários sucumbenciais, que são devidos ao advogado da
parte vencedora, com os créditos a que venha a ter direito a receber em um outro
processo.
Aos poucos, o status pré-reforma vem sendo
restabelecido pelo próprio Judiciário. E isso pode ser visto em números
bastante concretos. Em 2017, 2,6 milhões de ações haviam chegado às varas
trabalhistas. Com as regras saneadoras, o volume passou a recuar ano a ano, até
atingir 1,5 milhão em 2021, somado ao efeito da pandemia. Após a mudança
imposta pelo STF, a quantidade de processos em primeira instância voltou a
subir e, neste ano, até outubro, já chegou a 1,8 milhão.
A decisão do TST só tende a piorar esse
cenário. Os ministros da Corte trabalhista devem, decerto, sentir saudade dos
tempos em que os processos congestionavam as varas trabalhistas País afora. Só
isso pode explicar tamanha afronta à separação dos Poderes.
A fragilização da reforma trabalhista
representa retrocesso em seu sentido estrito. Significa recuos em avanços
promovidos pelas novas regras inseridas legitimamente na CLT por aqueles que
foram eleitos pelos cidadãos para fazê-lo.
Esse vaivém do que vale e do que não vale e
esse ativismo judicial reiterado, com a criação de regras nas teses, têm
efeitos deletérios múltiplos: afrontam a harmonia dos Poderes, afastam
investidores do País e espalham insegurança jurídica. O resultado de mais ações
na Justiça só tem um vencedor: o atraso do Brasil.
A persistente inflação global
O Estado de S. Paulo
Mesmo em países que podem cortar juros, como
os Estados Unidos, resiliência da inflação é desafio
Em sua última reunião de política monetária
de 2024, o Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos Estados Unidos) reduziu
como se esperava a taxa básica de juros do país em 0,25 ponto porcentual, para
o intervalo de 4,25% a 4,50%. O Fed, contudo, sinalizou que o ritmo de queda ao
longo de 2025 será mais comedido: a autoridade monetária agora prevê dois
cortes adicionais de 0,25 ponto; antes, previa 4 reduções. Motivo: a
resiliência da inflação.
Embora as causas sejam objeto de debate entre
estudiosos, a realidade é que a persistência da inflação no pós-pandemia segue
sendo um desafio para autoridades monetárias em todo o mundo. No início de
2024, a expectativa era de que o Fed começasse a reduzir os juros rapidamente,
mas o ano foi passando e os cortes só tiveram início em setembro.
Quando se olha para a frente, que é o que
interessa aos BCs quando determinam as taxas de juros, o cenário também é
complexo. A projeção para o indicador de gasto do consumidor (PCE), o preferido
do Fed para avaliar a dinâmica de preços, é de 2,5% em 2025, acima dos 2,1% de
setembro de 2024. Antes mesmo que o presidente eleito Donald Trump tome posse e
comece a implementar seu programa econômico de teor inflacionário, 2024 já lega
a 2025 desafios suficientes quando a questão é a inflação.
Na Inglaterra, tal qual nos Estados Unidos,
agora também já se projeta um 2025 com menos cortes de juros que o esperado
anteriormente. Na última reunião de 2024, o Banco da Inglaterra (BoE) manteve
os juros em 4,75%. Além disso, o presidente do BoE, Andrew Bailey, afirmou que
o aumento das incertezas econômicas (leia-se desaceleração do crescimento e
inflação resiliente) não permite que o banco se comprometa “com quando, e
quanto, cortaremos os juros no próximo ano”.
O cenário desafiador mesmo para as economias
que, por ora, apesar da moderação no ritmo, ainda operam com a perspectiva de
corte de juros ao longo de 2025 torna ainda mais complicada a missão do BC
brasileiro. Entre as grandes economias do mundo, somente Brasil e Rússia estão
em trajetória de aceleração contundente dos juros. E, ao contrário da Rússia,
que lida com inflação alta em consequência da invasão da Ucrânia, o Brasil não
está em guerra. A batalha brasileira é interna: governo gastador, pacote fiscal
desidratado e inflação acima do teto da meta.
Tudo somado, o que países desenvolvidos e com
juros sensivelmente mais baixos que os brasileiros estão demonstrando é que com
inflação não se brinca. Qualquer displicência no cumprimento de metas torna a
missão das autoridades monetárias, que se tornou sensivelmente mais difícil
depois da pandemia de covid-19, mais atribulada.
O Banco Central brasileiro vem demonstrando
compromisso firme com sua missão de trazer a inflação para a meta. Em vez de
ser achincalhado pelo presidente Lula da Silva e seu partido por fazer o que
deve, o BC precisa que as demais autoridades passem a se portar como adultos
também, ainda mais quando, além dos desafios internos, o cenário externo
projeta-se cada vez mais nebuloso.
Segurança nas estradas é medida urgente
Correio Braziliense
As primeiras evidências indicam que uma
combinação de fatores evitáveis na BR-116 — e que se repetem pelas estradas
brasileiras — mergulhou dezenas de famílias em um fim de ano de dor e luto
O acidente mais letal das rodovias federais
brasileiras nos últimos 18 anos, ocorrido na madrugada de sábado, se deu na
chamada rodovia da morte, a BR-116. Pode parecer algo esperado, em uma análise
rápida e até matemática do sinistro: temporada de férias, excesso de veículos
trafegando nos trechos mais perigosos do país e, consequentemente, um risco
aumentado de incidentes. Mas a morte de, ao menos, 41 pessoas na altura do
quilômetro 286, em Teófilo Otoni, Minas Gerais, parece não se tratar de
fatalidade. As primeiras evidências indicam que uma combinação de fatores
evitáveis — e que se repetem pelas estradas brasileiras —mergulhou dezenas de
famílias em um fim de ano de dor e luto.
Segundo a Polícia Civil mineira, o motorista
da carreta — o acidente envolveu também um ônibus de viagem e um carro de
passeio — não tinha autorização para dirigir desde 2022, quando se recusou a
fazer um teste de bafômetro em uma blitz. Mesmo assim, o homem, que não teve o
nome divulgado, teria carregado o caminhão no Ceará com granito e seguido para
o Espírito Santo. Ainda que tenha sido a primeira vez que o caminhoneiro voltou
ao volante em pelo menos 24 meses de CNH cassada, ele apostou que não precisaria
apresentar a licença nos quase 2 mil quilômetros que planejava percorrer. Não é
o único. Há um senso coletivo de que falta fiscalização nas estradas
brasileiras, sobretudo durante a noite.
A Federação Nacional dos Policiais
Rodoviários Federais (FenaPRF) relata um deficit de cerca de 600 servidores.
Recentemente, porém, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo
Lewandowski, disse que o número de policiais rodoviários federais lhe "parece
bastante razoável para atender às demandas". Entrou na conta do ministro a
"nova PRF", um projeto do governo que pretende fazer com que os
homens da corporação passem a atuar ostensivamente nas ferrovias e hidrovias
federais.
São as fiscalizações regulares e eficientes
nas rodovias que também inibem a presença de veículos sem condições para o
tráfego — outra hipótese levantada nas investigações em Minas Gerais. A
polícia apura se uma peça de granito teria se soltado da carreta, com
excesso de peso, e atingido o ônibus. Já alguns sobreviventes relatam que o
pneu do veículo com 45 passageiros teria estourado pouco antes do choque com o
caminhão.
Ao Correio, o especialistas em direito de
trânsito Marcelo Araújo elencou os três fatores que aumentam a probabilidade de
ocorrência de acidentes de trânsito graves: condutor mal preparado, veículo mal
conservado e vias ruins. Todos parecem estar presentes na grande tragédia da
BR-116. Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Transportes (CNT),
39% dos 4,62 mil quilômetros da rodovia que liga o Nordeste ao extremo sul
brasileiro não estou bons: em condição regular (27,9%), ruim (8,5%) ou péssima
(2,7%). Considerando todo o país, os índices sobem para 40,4%, 20,8% e 5,8%,
respectivamente.
A análise também evidencia a forte discrepância entre o estado das rodovias conforme a gestão. As condições ruim e péssima são de 25,9% e 7,7% nos trechos sob controle público e de 5,7% e 0,4%, nos concedidos à iniciativa privada. Outra leitura também rasa do cenário traçado pela CNT pode levar à aposta na privatização das estradas como principal medida para aumentar a segurança de quem trafega nelas. Não é razoável, porém, se restringir a essa medida quando se tem cerca de 75% das rodovias federais sob gestão pública e uma média de 155 acidentes por dia com mortos ou feridos. Garantir a segurança e a paz no trânsito tem que ser medida imediata. O trabalho nas estradas precisa ser melhorado agora.
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