A batalha orçamentária americana é ilustrativa. Primeiro, dos estranhos tempos vividos em que a maior economia do planeta se vê em graves apuros fiscais. Segundo, pelo risco de paralisia completa que houve há uma semana. Terceiro, pelas escolhas que o país está fazendo. Nada tem a ver com a velha batalha entre liberais gastadores e conservadores austeros.
Os Estados Unidos têm uma dívida do tamanho de três Chinas, ou seja, quase um PIB americano inteiro. Evidentemente, isso é insustentável, e os americanos precisam de cortes hoje e de trajetória futura de queda do déficit e da dívida. A maior potência tem perdido poder relativo na economia mundial, mas não pode correr o risco de uma onda de desconfiança em relação à sua capacidade de pagamento da dívida.
O presidente Barack Obama avisou na quarta-feira que os cortes seriam generalizados. Pouca coisa ficou de fora. O governo cortou parte dos projetos do trem-bala, investimentos em segurança de fronteiras, gastos da agência ambiental, da Nasa, do próprio Tesouro e da Casa Branca. Cortou projetos do Pentágono, como a construção de um novo motor para aviões de combate, e projetos de energia verde.
No Orçamento atual, aprovado ontem pelo Congresso, o plano é reduzir em US$38,5 bi o gasto, mas há também um projeto fiscal de médio e longo prazos para uma redução inacreditável de US$4 trilhões em 12 anos. Para isso, eles imaginam que US$1 trilhão virão dos ricos, milionários e bilionários, que perderão benefícios fiscais que Barack Obama herdou de Bush e manteve até agora. Desta vez, avisou que dará um basta. Ele usou a expressão "eu me recuso" a manter o corte de impostos dos ricos e diminuir as despesas de seguridade com os mais pobres. Ele pode mais do que tem feito, mas isso, de fato, não poderia fazer, sob pena de rasgar completamente as ideias pelas quais foi eleito.
O Pentágono soltou nota dizendo que não poderá manter certos programas de segurança com os cortes que terá que executar em seu orçamento. Os republicanos ficaram furiosos com os cortes nestas áreas, os democratas não gostaram de outros cortes. Um deles vai atingir a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês). Dado que os Estados Unidos não conseguiram avançar numa lei sobre mudança climática que realmente comprometesse o país com metas de cortes de emissões, a ação da EPA estava sendo apresentada pelo próprio governo como uma das formas de forçar a redução dos gases de efeito estufa. Mas agora a EPA vai perder parte do seu gás.
A sexta-feira da semana passada foi angustiante para o governo e emblemática do poder que tem o Congresso nos Estados Unidos. Como os republicanos bloquearam a aprovação da lei orçamentária, se nenhum acordo fosse assinado antes da meia-noite, o país pararia. Radicalmente. No Brasil, o governo pode continuar gastando 1/12 por mês do Orçamento, mas não pode fazer investimentos enquanto ele não for aprovado. Lá, não. Tem que fechar as portas das repartições. O desespero dos cientistas mostravam que quando se fala em parar é pra valer. Vários deles que comandam estudos com organismos vivos começaram a pedir aos seus colegas de outros países para receber suas amostras e culturas porque temiam que elas morressem, já que o governo teria que fechar as portas, mandar todos os funcionários para casa e suspender todos os serviços exceto os essenciais.
Ao final da queda de braço que durou até quase a meia-noite, com as televisões fazendo contagem regressiva para o momento em que ou haveria acordo ou o governo teria que parar, quando parecia tudo perdido, foi anunciado um acordo negociado diretamente entre o presidente e os líderes no Congresso. Obama aceitou um corte maior do que o previsto pela sua proposta, mas ao mesmo tempo se reservava o direito de dizer onde seriam feitos os cortes. Isso diz muito a favor do processo orçamentário americano. Ele não é apenas uma peça decorativa que cumpre um ritual de tramitação no Congresso e que pode ficar meses esperando ser aprovado. Lá, o ano fiscal - que não coincide com o ano calendário - tem que começar com o Orçamento aprovado e as negociações são para valer. Não há concessões de última hora que não serão respeitadas. O presidente fez cortes na carne, em projetos que apresentava como sendo suas vitrines, como os de energia limpa, mas há também cortes em áreas onde os republicanos achavam que deveria haver aumento de gastos, como os de segurança de fronteira. Há agora reclamações de todos os lados.
Há muita inconsistência no projeto de médio e longo prazos. Um deles, se a economia retomar mesmo o crescimento num contexto em que a inflação está subindo, eles terão que subir os juros que estão próximos de zero. Mas eles estão prevendo uma redução de US$1 trilhão no custo da dívida nestes 12 anos. É claro que se o país crescer a arrecadação aumenta, pode-se cortar a dívida/PIB e reduzir o custo do financiamento dessa dívida. Mas neste momento o que se vê é que a razão dívida/PIB tende a crescer nos próximos anos, e não cair, mesmo com os juros próximos de zero. Mas o que o processo americano nos mostra é que é fundamental fazer um projeto de equilíbrio fiscal de médio e longo prazo, como queria o ministro Antonio Palocci no meio do governo Lula. Na época, a então ministra Dilma Rousseff disse que essa ideia era "rudimentar", e que seria necessário combinar com os russos. Pelo visto, é exatamente isso que o presidente Obama está tentando: negociar com os americanos a garantia do futuro.
FONTE: O GLOBO
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