- O Globo
Brasil e Argentina têm questões concretas a resolver. Deveriam cuidar disso e não das birras de Bolsonaro contra o governo que toma posse hoje
Quando o presidente Alberto Fernández receber o governo do presidente Maurício Macri será um momento histórico na Argentina: pela primeira vez desde 1928 um governante não peronista conclui seu mandato no tempo regulamentar. Para os países da América Latina, tristemente conhecidos por suas instabilidades políticas, é um fato a comemorar. Felizmente, o Brasil terá o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, presente na festa. Uma decisão de última hora. Com sua mente autoritária, Jair Bolsonaro só respeita eleições que ele ou seus amigos ganham.
Foi uma sucessão de birras o que o presidente fez desde que saiu o resultado das urnas argentinas. O ministro Osmar Terra, antes de se saber que o vice-presidente iria, disse ontem no Estúdio i que “o presidente tem o direito de tomar essa decisão”, referindo ao fato de que não enviaria representante. Não tem não, ministro. Governantes não tomam decisões de Estado por razões pessoais. As relações entre Brasil e Argentina vão muito além do governo de ocasião. As relações internacionais não podem ser comandadas pelo fígado. Da mesma forma que Bolsonaro disse que não respeitaria a eleição brasileira caso não fosse eleito, ele tem desde o primeiro momento se irritado com a decisão do povo argentino. Cada um de nós pode achar que os argentinos erraram. Ou acertaram. Um presidente da República, entenda ou não a grandeza do cargo, representa o país, o Estado brasileiro. E isso deveria pautar seus atos. Um ano não foi suficiente para que Bolsonaro entendesse o que é ser presidente.
Brasil e Argentina têm obstáculos concretos à frente. O Mercosul está negociando acordos comerciais com outros países. A negociação mais adiantada está sendo com o Canadá. Ao sentarem-se as delegações dos quatro países, o Brasil pode querer mais abertura comercial, e a Argentina pode defender o oposto. Na teoria, o governo de Bolsonaro é liberal no comércio. Na prática, os peronistas sempre foram protecionistas. Quando os problemas reais aparecerem, que eles sejam tratados. Existem outras negociações em andamento com Cingapura, Coreia e Líbano. E há ainda o acordo com a União Europeia que precisará sair do papel.
Em períodos democráticos, todos os outros presidentes argentinos que não eram peronistas tiveram seus mandatos interrompidos. Arturo Frondizi, em 62, e Arturo Illia, em 66, foram depostos pelos militares. Raúl Alfonsín, Fernando De La Rúa anteciparam o fim de seus governos porque não conseguiram debelar crises econômicas. Tem sido assim. Só por isso já seria hoje um grande dia para os argentinos.
Macri deixa a economia em alguns pontos pior do que ele encontrou. Chegou cercado de expectativas por ser um nome novo, que veio do empresariado, e tinha planos para superar os problemas criados pelo governo de Cristina Kirchner. Conseguiu reabilitar o desacreditado índice de inflação. Mas os preços subiram. A pobreza aumentou. A dívida cresceu e tem vencimentos de curto prazo. O novo ministro da Economia, Martin Guzmán, já deu sinais de querer fazer uma reestruturação da dívida. Quando o ex-presidente Néstor Kirchner assumiu, tinha acabado de haver um calote. E ele em seguida impôs aos credores um enorme desconto na dívidas. Agora, de novo isso será feito.
— A Argentina é como uma pessoa que anda em círculos e sempre tropeça no mesmo lugar — disse um analista da situação argentina.
Uma indicação controversa foi a de Carlos Zanini que será o procurador-geral do Tesouro Nacional. Por lá passam todas as informações necessárias para as investigações dos crimes contra o patrimônio público. E o indicado é kirchnerista. A ex-presidente Cristina Kirchner enfrenta várias investigações por corrupção. Claramente a escolha foi sob medida para tentar proteger a vice-presidente. Cristina é parte fundamental da vitória de Fernández. Por sua vez, Fernández já trabalhou em outros governos, mesmo os não peronistas, e tem seus próprios vínculos políticos.
O novo governo argentino terá muitos problemas reais a enfrentar. O que é preciso verificar é se as empresas brasileiras têm a ganhar com a boa relação bilateral. Os dados mostram que sim. Depois da posse, tudo isso deveria ser tratado com a objetividade que deve estar presente nessas relações.
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