- Valor Econômico
Grupos são governos autônomos que regulam territórios
O coronavírus voltou a colocar em evidência um dos principais problemas da segurança pública do Rio: o domínio das milícias sobre determinadas regiões. Em abril, circularam denúncias sobre a atuação de grupos paramilitares mandando reabrir o comércio na zona oeste do município e na região metropolitana. “A cobrança das taxas pelas milícias não parou na pandemia. As milícias têm obrigado os comerciantes a abrirem as portas e os moradores a pagarem as taxas de proteção”, diz a antropóloga Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O Painel Rio Covid-19, da prefeitura, mostra que os bairros de Campo Grande, Bangu, Realengo e Santa Cruz, na zona oeste do município, estão entre os primeiros colocados nas estatísticas do coronavírus. Integram a lista dos dez primeiros bairros do Rio em casos confirmados e em mortes causadas pela covid. O primeiro em óbitos é Campo Grande, seguido de Bangu e só em terceiro lugar aparece Copacabana, na zona sul. Depois vêm Realengo, Tijuca e Santa Cruz.
Campo Grande e Santa Cruz são bairros com muitas favelas, dominados pelas milícias, onde o poder público tem pouco poder de fiscalização e as forças policiais, especialmente a Polícia Militar (PM), praticamente não fazem incursões, dizem promotores. Haveria “acordo tácito” do Estado para a polícia não entrar nessas localidades, afirmam. O “policiamento” nessas regiões é feito pelos próprios milicianos.
Na pandemia, a pressão das milícias sobre os comerciantes e moradores de regiões de mais baixa renda, como os bairros da zona oeste do Rio, se explica porque esses grupos dependem da economia rodando para sobreviver. É a partir do controle do território que os milicianos extraem o lucro, mirando todas as atividades econômicas possíveis: cobram taxas sobre o funcionamento do comércio, exploram o transporte “alternativo”, fazem transações imobiliárias, com construções de prédios; atuam na distribuição de gás e água, de sinal de internet e TV a cabo. A agiotagem é outra prática comum. O isolamento social e o fechamento do comércio não interessam aos milicianos, mesmo que a pressa na reabertura signifique aumento de casos confirmados e mais mortes pela covid-19.
“As milícias são governos autônomos que regulam o território e cobram impostos informais, como governos que são”, diz Jacqueline Muniz, da UFF. O resultado é que as pessoas que moram em locais de domínio armado da milícia são tributadas duas vezes: pagam para o Estado e pagam para o governo miliciano, diz Jacqueline. Ela considera esses grupos, muitas vezes formados por policiais ou ex-policiais, como o principal problema da segurança pública do Rio.
Uma forma de enfrentar o poder das milícias é fazer com que o Estado recupere os territórios milicianos, e regule os serviços essenciais prestados às populações que ali vivem. Na visão de um promotor, o controle paramilitar sobre uma região representa também ameça à democracia, pois essa área deixa de fazer parte do território nacional quando está sob o domínio miliciano. Jacqueline diz que a milícia não tem como existir sem a participação de segmentos de servidores do Estado e sem apoio político. É dessa forma que parte das taxas arrecadadas pela milícia serve para financiar caixa 2 de campanhas eleitorais, afirma.
Para Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a milícia vive um cenário favorável porque o projeto político que triunfou no Rio, com Wilson Witzel, e no país, com Jair Bolsonaro, se caracteriza pela ausência de controle do trabalho policial: “Tudo que a milícia quer é que quando um policial mata alguém isso não seja investigado, que a versão do policial seja automaticamente considerada como certa, que não haja controle de cima para baixo nas corporações, que não haja controle político sobre o funcionamento policial, que não haja política de segurança feita de forma centralizada. Então o cenário é muito favorável às milícias em razão da linha política ‘façam o que quiserem’.”
As milícias surgiram no Rio há cerca de 15 anos na favela de Rio das Pedras, na zona oeste da cidade, e na mesma época, em Santa Cruz e Campo Grande. Policiais militares e bombeiros, que haviam se instalado em Rio das Pedras, criaram grupos de segurança para combater o tráfico. As milícias foram legitimadas, inclusive no meio político, como uma “liga de autodefesa comunitária”, o que depois se viu que era falso, dado o envolvimento dos próprios milicianos com o tráfico de drogas. Esse movimento levou ao surgimento das narcomilícias.
Nos últimos anos milícias se profissionalizaram, ganhando estrutura de corporações. “Muitos grupos se transformaram em milícias S.A., com estrutura empresarial”, diz um promotor. Investimentos foram feitos em negócios regulares usando “laranjas”, acrescenta. A expansão levou as milícias a entrarem em novas atividades, como o roubo de combustível em dutos da Petrobras. Também passaram a lavar dinheiro em igrejas pentecostais, uma vez que o dízimo é difícil de rastrear. A expansão foi ainda geográfica, com grupos milicianos estendendo atuações para a Baixada Fluminense e a Costa Verde (sul do Estado do Rio).
“A milícia expandiu seus negócios diante da negligência do poder público”, diz Renata Souza, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e pré-candidata do Psol à Prefeitura do Rio. Ela diz que a forma de enfraquecer as milícias é minando o braço econômico e inviabilizando o braço político dessas organizações.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das milícias da Alerj, de 2008, presidida pelo deputado Marcelo Freixo (Psol), fez uma série de recomendações. A CPI foi importante para “descortinar” o tema no Rio. Mas hoje está se “enxugando gelo” e seria preciso rever os meios de investigação, uma vez que métodos tradicionais, como o uso de escutas e testemunhas, mostram-se difíceis para a obtenção de resultados. Um caminho é o fortalecimento dos bons policiais para instaurar um sistema de investigação de “dentro para fora”. Também poderia se criar força-tarefa que envolva os MPS, inclusive o Militar, e as policiais. E os líderes presos precisam ficar incomunicáveis em presídios federais.
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