- Valor Econômico
Na retração da economia, as decisões “racionais” de cada empresa delineam efeitos negativos ao conjunto
Ao observar as relações que constituem “a economia como um todo”, os economistas Wynne Godley e Marc Lavoie partem da matriz keynesiana para construir um modelo dinâmico no qual os “fluxos de gasto e renda” promovem mudanças na composição dos estoques de riqueza.
Consideremos que em um determinado momento um conjunto de empresas já exerceu a demanda de financiamento e realiza gastos de investimento. Este conjunto de empresas está a realizar um “déficit” financiado pelos bancos. Ao mesmo tempo, um outro conjunto está colhendo os resultados de suas decisões anteriores de investimento, isto é, realizam um superávit, um “surplus”. É a obtenção deste superávit corrente que permite simultaneamente: a) servir às dívidas contraídas para o financiamento dos ativos formados no passado, e b) acumular fundos líquidos dos quais se nutre o sistema bancário enquanto gestor do estoque de riqueza financeira - dívidas e direitos de propriedade.
Desnecessário dizer que a acumulação de recursos líquidos favorece a situação patrimonial das empresas e as torna mais atraentes para a concessão de novos créditos, o que confere um caráter procíclico ao endividamento. Em uma conjuntura favorável, o processo de aumento do investimento e do endividamento gera um fluxo de renda que permite servir à dívida passada.
Isto significa que a economia “em seu conjunto” deve gerar dívida no presente para que a dívida passada possa ser servida. O movimento vai da concessão de crédito novo destinado a financiar os gastos de investimento e de consumo para a geração da renda, com a consequente acumulação de ativos e passivos nos balanços dos agentes.
Godley e Lavoie, ao analisarem o fluxo de fundos e as mudanças na composição dos estoques entre o início e o término de cada período, introduzem o tempo histórico na dinâmica capitalista.
Começamos cada período com uma configuração dos estoques que se altera por força dos novos fluxos gerados ao longo do período. O sistema não gera tendências ao equilíbrio, tampouco ao desequilíbrio, mas uma sequência de transformações nos balanços de bancos, empresas, governos, famílias e setor externo. Ativos de uns são passivos de outro, ou seja, dívidas de uns são direitos de outros. As ações preferenciais são direitos que conferem prioridade aos rendimentos da empresa e as ações ordinárias conferem direitos a almejar o controle da propriedade. As famílias adquirem ao longo do tempo depósitos à vista, títulos do governo, ações e títulos de dívida emitidos pelos bancos ou diretamente nos mercados de capitais pelas empresas. São formas incontornáveis de acumular riqueza em uma economia monetária.
Os bancos comerciais e demais intermediários financeiros operam no espaço criado pela atuação garantidora dos Bancos Centrais e regulam a oferta de crédito para o setor empresarial não-financeiro amparados na “criação” de passivos, depósitos à vista e, subsidiariamente, no endividamento junto ao público. As instituições financeiras não bancárias - digamos, os bancos-sombra - alavancam posições ativas da clientela amparadas nos passivos contraídos nos mercados monetários atacadistas.
A inter-relação entre os balanços - ativos e passivos - dos agentes relevantes, bancos, empresas, famílias, governo e setor externo, coloca as instituições financeiras na cúspide dos processos de decisão de gasto, formação da renda e gestão dos estoques de ativos gerados. Os bancos e demais instituições financeiras ao conceder empréstimos, criam moeda e acomodam as reconfigurações nos direitos de propriedade e de apropriação (ações e títulos de dívida) que nascem e se transformam no processo de acumulação da riqueza.
Nas etapas de retração cíclica, diante da queda do faturamento, as empresas encolhem os gastos, demitem trabalhadores com o propósito de reduzir o seu próprio endividamento, mas para o conjunto da economia isto leva necessariamente ao aumento da dívida porque o encolhimento dos fluxos de renda dificulta servir à dívida passada.
Para cada unidade “microeconômica” é racional diminuir o “déficit” corrente. No entanto, em uma conjuntura de desaceleração da economia, as decisões “racionais” de cada uma delas conformam efeitos negativos para o conjunto, o que vai agravar a situação patrimonial de todas, diante da rigidez dos custos financeiros da dívida contratada no passado.
As instituições que compõem o chamado mercado financeiro também são responsáveis pela avaliação e negociação diária em mercados especializados do estoque de direitos de propriedade e de títulos de dívida nascidos dos fluxos anteriores de financiamento ao gasto em novos ativos reprodutivos ou acumulados a partir dos créditos destinado à compra de ativos já existentes.
Os governos financiam os gastos emitindo títulos públicos, em estreita cooperação com os Bancos Centrais que regulam as condições de liquidez do mercado monetário mediante a recompra diária dos papéis elegíveis, quer do governo, quer do setor privado.
O economista de Harvard, Emmanuel Fahri, empreendeu recentemente um estudo a respeito dos “ativos seguros”. Entre o cardápio de ativos disponíveis, diz Fahri, alguns são percebidos como “mais seguros” do que outros. No entanto, a segurança é um conceito fugidio, porque nada é absolutamente seguro. Os investidores sempre visualizarão a segurança de um ativo através do prisma de suas próprias percepções, necessidades e preocupações, em relação a outros ativos, e em relação às percepções de outros investidores.
Fahri afirma que seu artigo adota uma definição pragmática e estreita: “um ativo seguro é um simples instrumento de dívida que deverá preservar seu valor durante eventos sistêmicos adversos”.
No episódio de 2008, assim como na pandemia, os Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais cuidaram e cuidam de sustar a desvalorização dos ativos privados que frequentam os balanços de empresas, bancos e famílias. Os bancos privados e outros intermediários financeiros garantem a qualidade de suas carteiras e salvaguardam seus patrimônios carregando títulos públicos com rendimentos reduzidos, mas valor assegurado pelo poder do Estado como gestor da moeda, a ponte segura entre o passado apodrecido e o futuro incerto.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp,
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