EDITORIAIS
Bolsonaro tem muito a explicar sobre a
Covaxin
O Globo
São a cada dia mais frágeis os argumentos do governo para justificar o contrato
de R$ 1,6 bilhão para importar a Covaxin, vacina mais cara entre todas as
compradas pelo Brasil. Apesar do tumulto provocado pelos senadores governistas
na sessão de ontem da CPI da Covid, o depoimento do servidor Luis Ricardo
Miranda, chefe do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, e de seu
irmão, o deputado Luis Claudio Miranda (DEM-DF), trouxe detalhes novos que
confirmam as suspeitas. Apresentaram evidências de vários alertas ao presidente
Jair Bolsonaro sobre as irregularidades, como Luis Ricardo denunciara em
entrevista ao GLOBO. Ele reiterou que, em encontro no dia 20 de março no
Alvorada, Bolsonaro se comprometeu a encaminhar o caso à PF.
Mesmo depois do encontro em que afirmaram ter denunciado as suspeitas ao presidente, a pressão sobre Luis Ricardo persistiu, segundo mensagens apresentadas. As evidências revelam um pedido de pagamento antecipado, fora do contrato, para importar três lotes com data próxima ao vencimento. Se tivesse sido assinado, a empresa poderia cobrar US$ 45 milhões adiantados. Depois de muito resistir, Luis Claudio disse que Bolsonaro atribuiu as irregularidades ao deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara. Luis Ricardo afirmou ter ficado sabendo da cobrança de propina por vacinas, mas não deu detalhes.
Tudo é estranho no caso Covaxin. Como
revelou O GLOBO, cada dose foi encomendada por R$ 80,7, o quádruplo do valor
pago pela AstraZeneca. Em contraste com o procedimento-padrão, a negociação foi
feita com um intermediário, a Precisa Medicamentos, não com o laboratório
Bharat Biotech. O pedido de antecipação de doses veio em nome de outra empresa,
a Madison Biotech, que nem consta do contrato. Bolsonaro se empenhou
pessoalmente na negociação, apelando ao primeiro-ministro da Índia, Narendra
Modi.
O histórico da Precisa recomendaria
cautela. Entre seus sócios está a Global Saúde, investigada por um contrato para
fornecer medicamentos nunca entregues, a que é atribuído prejuízo de R$ 20
milhões — negócio assinado no governo Temer, quando o ministro da Saúde era
justamente Ricardo Barros.
Diante das denúncias, o Planalto adotou
comportamento-padrão: desqualificou os fatos, atacou os denunciantes, alegou
que documentos apresentados eram fraudados (embora constem do sistema do
ministério), pôs as autoridades para investigar não as acusações, mas quem as
fez.
Os descaminhos para a compra da Covaxin
levam inevitavelmente ao gabinete de Jair Bolsonaro. O governo tem muito a
explicar. Por que comprar uma vacina tão cara, oferecida antes por menos de um
décimo do preço? Por que o documento para importação foi emitido em nome de uma
empresa sediada em Cingapura que nem constava no contrato? Por que exigir
pagamento adiantado? Por que tanta pressão dos escalões mais altos do
ministério sobre Luis Ricardo só nesse caso? Por que Bolsonaro, que desdenhava
as negociações por vacinas, se empenhou pessoalmente, a ponto de levar o tema a
Modi? Que fez ele diante da denúncia? E em relação a Barros? Por que a PF só
entrará no caso agora?
Antes do encontro com o presidente, uma
troca de mensagens entre os irmãos dizia: “Hoje a gente descobre se o Bolsonaro
é cúmplice ou honesto”. É isso que o Brasil quer saber.
Pesquisa dá vantagem a Lula em 2022, mas
cenário ainda é incerto
O Globo
O noticiário tem sido bom para o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tanto no front jurídico quanto no
eleitoral. Depois que o Supremo confirmou, por 7 votos a 4, a parcialidade do
ex-juiz Sergio Moro no processo do triplex do Guarujá (SP), o ministro Gilmar
Mendes estendeu os efeitos da decisão e também liquidou as provas e denúncias
nos casos do sítio de Atibaia e da doação de um imóvel ao Instituto Lula.
No plano eleitoral, Lula se tornou o
principal beneficiário da insatisfação com o governo Jair Bolsonaro e aparece
como favorito na disputa de 2022. Obteve 49% das intenções de voto, ante 23% de
Bolsonaro, na pesquisa estimulada da Inteligência em Pesquisa e Consultoria
(Ipec). Com 11 pontos percentuais acima da soma dos adversários, seria eleito
em primeiro turno.
Mais surpreendente é o resultado da
pesquisa espontânea, em que os entrevistados apenas dizem em quem votarão sem
ser apresentados às opções: Lula tem 38%, ante 20% de Bolsonaro. A rejeição de
Bolsonaro é a maior entre os principais candidatos: 62% dizem que não votariam
nele. A aprovação ao governo, 24%, mostra que a pandemia levou sua popularidade
ao piso.
A mais de um ano da eleição, porém, é cedo
para tirar conclusões definitivas. Bolsonaro tem na manga três trunfos que
podem fazê-lo recuperar a popularidade. Primeiro, o avanço da vacinação.
Projeções são arriscadas, mas parece provável que a população adulta esteja
imunizada até o final de 2021. Segundo, a recuperação da economia. As projeções
para este ano apontam um crescimento em torno de 5%, com impacto positivo na
renda, no desemprego e no desalento no ano que vem.
O governo terá o que comemorar e poderá
reconquistar eleitores perdidos para Lula entre os mais pobres. O terceiro
trunfo é justamente a expansão do Bolsa Família, que também tende a contribuir
para isso. O programa tem, em particular, potencial para diminuir a vantagem de
Lula no Nordeste, onde ele tem 63% das intenções na estimulada, ante 15% de
Bolsonaro.
Outro fator a considerar são os movimentos
para construir uma terceira via entre Lula e Bolsonaro. Pela pesquisa Ipec, o
voto de um terço dos eleitores está indefinido na espontânea (no Datafolha,
metade). Há, portanto, terreno a explorar. Para as alternativas que se
apresentaram até agora, é um caminho difícil, mas não inviável.
Na pesquisa Ipec, o pedetista Ciro Gomes e
o tucano João Doria aparecem encostados, respectivamente com 7% e 5%. Luiz
Henrique Mandetta, do DEM, tem 3%. Parcela considerável do eleitorado diz não
conhecer nem Doria nem Ciro o bastante para dar opinião — 25% para o tucano;
20% para o pedetista. Pelo menos em tese, parte desses eleitores, aqueles que
não querem nem Lula nem Bolsonaro, poderia escolher um deles ou outro nome
quando a campanha esquentar. Não se sabe quanto a pandemia e os escândalos
derivados dela ainda abalarão a imagem de Bolsonaro. Visto de hoje, o cenário é
sem dúvida favorável a Lula. Só que a eleição é daqui a 15 meses. Tudo pode
acontecer até lá.
Enfim, a renda
Folha de S. Paulo
Reforma do IR poderia ser mais ousada, mas
texto acerta ao tributar dividendos
Após longo atraso, a proposta
de reforma do Imposto de Renda de pessoas físicas e empresas
apresentada pelo governo se mostra um passo na direção certa. As mudanças
apontam para maior justiça tributária e alguma simplificação.
A primeira vertente são as alterações para
empresas, com redução do IR sobre o lucro líquido de 15% para 10% em dois anos.
Fecham-se, em contrapartida, algumas brechas legais para deduções.
Em paralelo, busca-se maior eficiência com
a aproximação entre as bases de cálculo da contribuição social sobre o lucro e
do IR, além da nova periodicidade trimestral para o pagamento desses tributos.
A outra parte da reforma diz respeito ao
imposto das pessoas físicas. O governo propôs ampliar a faixa de isenção da
cobrança de R$ 1.903,98 para R$ 2.500 mensais, ampliando em 5,6 milhões (para
16,3 milhões) o universo de contribuintes isentos. Também foi atualizada a
tabela de incidência em todas as faixas de renda.
Jair Bolsonaro descumpre, com isso, a
promessa de campanha de elevar a isenção a cinco salários mínimos (R$ 5.500
hoje). Mentir ao eleitor é sempre deplorável, mas, do ponto de vista da política
tributária, a medida aventada por Bolsonaro em 2018 faria pouco sentido num
país de renda per capita de R$ 2.931 mensais em 2020.
A contrapartida às desonerações para
empresas e renda do trabalho é a retenção na fonte de 20% sobre o pagamento de
dividendos que excederem R$ 20 mil ao mês.
A cobrança sobre os dividendos é correta.
Há distorção quando trabalhadores celetistas pagam IR e os que conseguem se
organizar como pessoa jurídica, normalmente os mais ricos, recebem rendimentos
de mesma natureza —oriundos de seu trabalho— de forma isenta.
Na tramitação do projeto de lei, contudo,
será necessário verificar se a calibragem entre a tributação das empresas e dos
dividendos é mesmo a mais adequada.
A proposta seria mais ambiciosa se
reduzisse algumas possibilidades para deduções das pessoas físicas, mas o risco
seria dificultar a aprovação. De todo modo, a cobrança sobre dividendos atinge
corretamente os estratos mais abonados da sociedade.
No agregado, os cálculos do governo apontam
para um impacto neutro na arrecadação —as medidas de alívio fiscal são
compensadas por outras de alta da receita. O Brasil tem carga tributária
exagerada, mas concentrada no consumo de bens e serviços.
Há espaço para aperfeiçoamentos, e os
cálculos oficiais ainda passarão por escrutínio. Porém o tema está lançado, e o
aparente alinhamento entre a equipe econômica e as lideranças do Congresso
sugere possibilidade de avanço.
Tirania chinesa
Folha de S. Paulo
Cerco do regime ditatorial à autonomia de
Hong Kong vitima liberdade de imprensa
Quando o controle de Hong Kong foi
transferido do Reino Unido para a China, em 1997, Pequim comprometeu-se, dentro
da fórmula “um país, dois sistemas”, a manter por 50 anos uma série de direitos
de que os cidadãos do território gozavam, como a liberdade de expressão e a de
imprensa.
Esta não vem sendo devidamente respeitada.
Assim o demonstra a evolução da ex-colônia no ranking de liberdade de imprensa
da ONG Repórteres Sem Fronteiras: a ilha passou do 18º lugar em 2002, quando a
classificação foi criada, para o longínquo 80º em 2021.
Nesta semana, o torniquete na mídia atingiu
níveis inéditos com o fechamento
do jornal Apple Daily.
Criado em 1995, o periódico notabilizou-se por sua defesa da democracia, bem
como por denunciar a repressão e a perseguição da ditadura chinesa contra
manifestantes e dissidentes.
Agora, o próprio diário tornou-se uma
vítima da política de cerceamento. Valendo-se da draconiana nova lei de
segurança nacional, promulgada no ano passado, cerca de 500 policiais varejaram
a sede do jornal em 17 de junho.
Na ação, os agentes apreenderam dezenas de
computadores e detiveram membros da direção do jornal, denunciados por conluio
com agentes estrangeiros. Dias depois, um editorialista do periódico foi preso
sob a mesma acusação.
Além da intimidação direta, as autoridades
miraram o estrangulamento financeiro da publicação, congelando 18 milhões de
dólares honcongueses (R$ 11,7 milhões) em ativos pertencentes a três empresas
ligadas ao Apple Daily.
Premido por todos os lados, o veículo foi
obrigado a encerrar as atividades. Seu último número teve um milhão de cópias,
cerca de dez vezes a circulação normal, para atender à demanda.
Teme-se agora que a repressão avance sobre
outros meios que praticam alguma forma de jornalismo crítico, como o South
China Morning Post, do bilionário Jack Ma, e a emissora pública RTHK, que vem
sofrendo intervenções.
A tentativa de criminalização do jornalismo
compõe um quadro mais amplo de violações de liberdades individuais e coletivas
que o regime chinês vem impondo ao território, em especial desde os colossais
protestos pró-democracia ocorridos lá em 2019.
As ações aproximam Hong Kong do cotidiano
tirânico do restante da China e tornam ficção qualquer ideia de autonomia da
ilha.
Quando o contribuinte tem razão
O Estado de S. Paulo
Empresários reclamam de mudanças abruptas
nas leis tributárias e reivindicam mais segurança jurídica para investir no
País
Em evento virtual promovido pela Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o presidente da Câmara dos
Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), fez uma exposição sobre as
incertezas jurídicas causadas pela legislação dispositiva no campo do direito
tributário, que é editada sob a forma de portarias, resoluções e instruções
normativas por órgãos do segundo escalão da administração pública, como é o
caso da Receita Federal. O que motivou essa discussão foram as dúvidas da
entidade com relação à reforma tributária e à promessa do Ministério da
Economia de divulgar prontamente o projeto que altera o imposto das pessoas
jurídicas.
Esse é um tema de grande interesse do
empresariado, que há muito tempo reclama de mudanças abruptas na regulamentação
das leis tributárias e reivindica mais segurança jurídica para investir no
País. Tanto os empresários da Fiesp quanto o presidente da Câmara dos Deputados
concentraram a atenção no modo como a Receita se acostumou a atuar,
especialmente na regulamentação das leis que regem a cobrança do Imposto de
Renda das pessoas físicas e jurídicas.
Segundo os empresários, quando discorda do teor de determinadas leis aprovadas pelo Congresso, a Receita se vale da regulamentação para reformulá-las. Algumas vezes o órgão também interpreta as leis tributárias de modo muito amplo, criando com isso uma jurisprudência contrária aos objetivos e motivações dos legisladores. Outras vezes inclui centenas e até milhares de dispositivos nas resoluções e nas portarias, instituindo uma legislação paralela à legislação tributária votada pelo Congresso.
Por isso, quando as empresas calculam o
Imposto de Renda que têm a pagar em cada exercício com base na legislação
oficial, desprezando essa legislação paralela, acabam sendo autuadas. Se
recorrerem ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, serão quase sempre
derrotadas. Já se recorrerem à Justiça têm oportunidade de saírem vitoriosas,
mas isso exige a manutenção de um custoso departamento integrado por contadores
e advogados.
Em sua intervenção no evento da Fiesp, o
deputado Arthur Lira afirmou estar consciente de que a Receita nem sempre é
fiel ao que as leis tributárias dizem. “A Receita Federal não pode e não vai
continuar com o poder de regulamentar, de soltar resoluções e de legislar em
cima da legislação tributária. Não se pode baixar duas mil, três mil resoluções
a cada ano, o que enlouquece o contribuinte”, disse o presidente da Câmara.
Segundo ele, é inadmissível que as empresas gastem com assessoria jurídica para
não serem autuadas num ano sendo que essas resoluções acabam sendo alteradas no
ano seguinte.
As críticas de Lira são endossadas pela
Frente Parlamentar Mista de Reforma Tributária, cujos líderes afirmam que, se o
Legislativo não detiver a tendência da Receita Federal de “criar ordens e
legislar”, a área jurídico-fiscal do País se converterá num “manicômio
tributário”. Para esses líderes, o máximo que a Receita tem de fazer é
fiscalizar e cobrar. Na mesma linha, o deputado Arthur Lira disse que, quando
votar a reforma tributária, a Câmara aprovará um dispositivo que proibirá o
órgão de sobrepor resoluções e portarias às normas tributárias, afrontando o
princípio da hierarquia das leis.
Como era de esperar, as entidades sindicais
dos fiscais e auditores reagiram imediatamente. Para o Sindicato Nacional dos
Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), os órgãos públicos têm o
poder e o dever de fazer a regulamentação das leis aprovadas em suas
respectivas áreas de atuação. Para a Associação Nacional dos Auditores Fiscais
da Receita Federal (Unafisco), se fizer o que prometeu, o presidente da Câmara
estará cometendo um equívoco. Isto porque, sem uniformidade interpretativa,
cada auditor entenderá a legislação a seu modo, aumentando ainda mais a
insegurança jurídica.
Dada a histórica tendência de fiscais e
auditores da Receita de exorbitar no uso de prerrogativas, esses argumentos
corporativos são inconvincentes. Nessa discussão proposta pela Fiesp, é claro
que o contribuinte tem razão.
A defesa da Federação
O Estado de S. Paulo
A repartição de competências é o ‘coração
da Federação’, disse Cármen Lúcia
Por maioria de votos, o plenário do Supremo
Tribunal Federal (STF) entendeu que é inconstitucional a preferência da União
em relação a Estados e municípios nas execuções fiscais. A decisão é
significativa defesa do princípio federativo, com o reconhecimento de que,
diferentemente do que ocorria em regimes constitucionais anteriores, a
Constituição de 1988 proibiu expressamente a discriminação entre entes
federados.
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências
entre si”, diz o texto constitucional.
Proposta pelo governo do Distrito Federal
em 2015, a Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental (ADPF) 357
questionou a regra do Código Tributário Nacional (CTN) que prevê a preferência
da União em relação a Estados, municípios e Distrito Federal na cobrança
judicial de créditos da dívida ativa. Segundo a procuradoria-geral do Distrito
Federal, além de contrariar a Constituição de 1988, essa preferência dada ao
governo central prejudica a recuperação das dívidas e as contas dos governos
locais.
“A Carta Política de 1988 promoveu uma
verdadeira reconstrução do federalismo brasileiro, que se manteve apagado ao
decorrer do regime ditatorial, não mais suportando distorções como a ordem de
preferência estabelecida nos dispositivos impugnados”, afirmou o governo do
Distrito Federal na ação.
Vale destacar que, durante o regime
militar, com a vigência de outra ordem constitucional, o Supremo editou uma
súmula validando precisamente o dispositivo legal discutido na ADPF 357. “O
concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código
Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9.º, I, da Constituição
Federal”, dizia a Súmula 563 do STF, que agora foi cancelada.
Em seu voto, a relatora da ação, ministra
Cármen Lúcia, fez um histórico do princípio do federalismo na jurisprudência do
Supremo, mostrando que a aceitação da preferência da União na execução fiscal
estava baseada num regime jurídico que já não estava vigente. “O tema é
sensível e merece ser reapreciado à luz das normas constitucionais inauguradas
pela Constituição de 1988”, disse a relatora.
Ao lembrar que o texto constitucional de
1988 exige tratamento isonômico entre os entes federativos, a ministra Cármen
Lúcia destacou que a repartição de competências é o “coração da Federação”. Ou
seja, não existe uma hierarquia entre os entes federativos, como às vezes
equivocadamente se pensa. A União “é autônoma e iguala-se aos demais entes
federados, sem hierarquia, com competências próprias”, disse a ministra Cármen
Lúcia.
Não há precedência da União. Dentro das
respectivas competências, cada ente federativo é autônomo. Tal característica
da Federação confere funcionalidade à atuação do Estado, permitindo que o poder
público atue em cada realidade local respeitando suas especificidades e
atendendo às suas concretas necessidades.
No ano passado, o Supremo reconheceu que
União, Estados e municípios desfrutavam de uma competência compartilhada na
área da saúde pública. Com isso, o governo federal não poderia impor regras
gerais – como queria o presidente Jair Bolsonaro, em sua batalha contra as
medidas de isolamento social – aos entes federativos. A defesa da competência
de governadores e prefeitos foi medida de especial relevância no enfrentamento
da pandemia.
A decisão de agora do Supremo a respeito da
não discriminação dos entes federativos nas execuções fiscais está em harmonia
com a posição adotada sobre a saúde pública. Para que Estados e municípios
desfrutem de verdadeira autonomia dentro de suas competências, eles devem
dispor de meios efetivos para cobrança de suas dívidas fiscais.
Tanto para o equilíbrio institucional como para a eficiência do poder público em suas várias esferas, é essencial que o Supremo assegure a plena efetividade do princípio federativo. Autônomos, Estados e municípios não são e não podem ser tratados como entes dependentes da União. (Ver acima o editorial Quando o contribuinte tem razão.)
O fim da liberdade em Hong Kong
O Estado de S. Paulo
Desde meados do ano passado, com método e
brutalidade atípicos até para seus próprios padrões, a China tem implementado
uma série de medidas que visam a acabar com a autonomia de Hong Kong com
bastante antecedência.
Pelo que fora pactuado no acordo sino-britânico
para devolução da soberania de Hong Kong à China, firmado entre o país asiático
e o Reino Unido em 1997, a ilha permaneceria como território autônomo até 2047,
um arranjo geopolítico que ficou conhecido como “um país, dois sistemas”. Pois
bem. Ao que parece, os burocratas do Partido Comunista Chinês devem ter achado
este prazo demasiado longo e resolveram mostrar os dentes. E só não violaram o
acordo com os britânicos antes por falta de condições.
Agora, valendo-se de sua pujança econômica
e do seu poderio militar incrementado nos últimos anos, a China já não se sente
mais tolhida pela chamada comunidade internacional para dar vazão aos seus
ímpetos liberticidas. Ao fazer o que tem feito com Hong Kong, e como tem feito,
o regime de Pequim dá mostras de que se despiu de pudores e não mais receia
eventuais sanções externas.
Em junho de 2020, o governo chinês fez
aprovar no Congresso Nacional do Povo uma draconiana lei de segurança nacional
que passou a punir com pena de prisão perpétua qualquer honconguês que se
manifeste contrariamente aos desígnios de Pequim. Atos de oposição ao regime,
ou a mera defesa da liberdade na ilha, passaram a ser tratados como
“terrorismo”, “separatismo” ou “conluio com forças externas”, algo próximo da
alta traição.
Após atacar a liberdade de expressão dos
honcongueses, este ano foi a vez de a China avançar sobre o sistema
político-eleitoral local. Em maio, o presidente Xi Jinping sancionou uma
alteração na Lei Básica, a “Constituição” honconguesa, que mudou
substancialmente o sistema eleitoral vigente na ex-colônia britânica. Pequim
passou a ter poder de veto sobre todas as candidaturas a cargos eletivos na
ilha por meio da instalação de um “Comitê Revisor”, cuja principal atribuição
não é outra se não avaliar quão “patriota” é determinado candidato, uma espécie
de teste de submissão ao regime.
Isto feito, o Partido Comunista Chinês
achou que era a hora de fulminar o que ainda restava de imprensa livre e
independente em Hong Kong. Há cerca de uma semana, o governo chinês determinou
o congelamento das contas bancárias do jornal Apple Daily, um dos mais lidos no território e um dos
últimos jornais críticos à política expansionista da China que ainda eram
publicados. Além da asfixia financeira, forças leais ao regime invadiram instalações
do periódico e prenderam repórteres e editores como parte de uma ação
coordenada para acabar com toda e qualquer dissidência política em Hong Kong.
A bem da verdade, o Apple Daily já vinha sofrendo
com a queda de suas receitas publicitárias – muitos anunciantes foram coagidos
pela ditadura chinesa a deixar de publicar no jornal. Além disso, seus
jornalistas eram alvo de diuturnas campanhas de difamação. Não poucas vezes o
jornal foi alvo de ataques com bombas incendiárias. Ainda assim, o Apple Daily vinha lutando
para, com relativo sucesso, levar informação aos cidadãos honcongueses. O
congelamento de seus ativos, no entanto, foi o golpe fatal que levou a direção
do jornal a anunciar o encerramento de suas atividades. Milhares de pessoas
fizeram longas filas para comprar a última edição do jornal.
“Percebemos que a China está no controle.
Na prática, a soberania sobre Hong Kong é chinesa, por mais que países como o
Reino Unido e os Estados Unidos contestem suas ações”, disse ao Estado o professor de relações
internacionais da ESPM-SP, Alexandre Uehara.
Para os cidadãos de Hong Kong, o Apple Daily sempre foi muito mais do que um jornal. Foi um bastião das liberdades na ilha. Um veículo com este poder simbólico não poderia mesmo escapar incólume das garras do dragão chinês.
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