'A falta de compostura nos envergonha perante o mundo'
Leia a íntegra do discurso:
A propósito dos eventos e pronunciamentos
do último dia 7 de setembro, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro
Luiz Fux, já se manifestou com relação aos ataques àquele Tribunal, seus
Ministros e às instituições, com o vigor que se impunha.
A mim, como Presidente do Tribunal Superior
Eleitoral cabe apenas rebater o que se disse de inverídico em relação à Justiça
Eleitoral. Faço isso em nome dos milhares de juízes e servidores que servem ao
Brasil com patriotismo – não o da retórica de palanque, mas o do trabalho duro
e dedicado –, e que não devem ficar indefesos diante da linguagem abusiva e da
mentira.
Já começa a ficar cansativo, no Brasil, ter
que repetidamente desmentir falsidades, para que não sejamos dominados pela
pós-verdade, pelos fatos alternativos, para que a repetição da mentira não crie
a impressão de que ela se tornou verdade. É muito triste o ponto a que
chegamos.
Antes de responder objetivamente a tudo o
que precisa ser respondido, faço uma breve reflexão sobre o mundo em que
estamos vivendo e as provações pelas quais têm passado as democracias
contemporâneas. É preciso entender o que está acontecendo para resistir
adequadamente.
A RECESSÃO DEMOCRÁTICA NO MUNDO
A democracia vive um momento delicado em
diferentes partes do mundo, em um processo que tem sido batizado como recessão
democrática, retrocesso democrático, constitucionalismo abusivo, democracias
iliberais ou legalismo autocrático. Os exemplos foram se acumulando ao
longo dos anos: Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Geórgia, Ucrânia, Filipinas,
Venezuela, Nicarágua e El Salvador, entre outros. É nesse clube que muitos
gostariam que nós entrássemos.
Em todos esses casos, a erosão da
democracia não se deu por golpe de Estado, sob as armas de algum general e seus
comandados. Nos exemplos acima, o processo de subversão democrática se deu
pelas mãos de presidentes e primeiros-ministros devidamente eleitos pelo voto
popular. Em seguida, paulatinamente, vêm as medidas que desconstroem os pilares
da democracia e pavimentam o caminho para o autoritarismo.
TRÊS FENÔMENOS DISTINTOS
Há três fenômenos distintos em curso em
países diversos: a) o populismo; b) o extremismo e c) o autoritarismo. Eles não
se confundem entre si, mas quando se manifestam simultaneamente – o que tem
sido frequente – trazem graves problemas para a democracia.
O populismo tem lugar quando líderes
carismáticos manipulam as necessidades e os medos da população, apresentando-se
como anti-establishment, diferentes “de tudo o que está aí” e prometendo
soluções simples e erradas, que frequentemente cobram um preço alto no futuro.
Quando o fracasso inevitável bate à porta – porque esse é o destino do populismo –, é preciso encontrar culpados, bodes expiatórios. O populismo vive de arrumar inimigos para justificar o seu fiasco. Pode ser o comunismo, a imprensa ou os tribunais.
As estratégias mais comuns são conhecidas:
a) uso das mídias sociais, estabelecendo
uma comunicação direta com as massas, para procurar inflamá-las;
b) a desvalorização ou cooptação das
instituições de mediação da vontade popular, como o Legislativo, a imprensa e
as entidades da sociedade civil; e
c) ataque às supremas cortes, que têm o
papel de, em nome da Constituição, limitar e controlar o poder.
O extremismo se manifesta pela
intolerância, agressividade e ataque a instituições e pessoas. É a não aceitação
do outro, o esforço para desqualificar ou destruir os que pensam diferente.
Cultiva-se o conflito do nós contra eles. O extremismo tem se valido de
campanhas de ódio, desinformação, meias verdades e teorias conspiratórias, que
visam enfraquecer os fundamentos da democracia representativa. Manifestação
emblemática dessa disfunção foi a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos,
após a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais. Por aqui, não faltou
quem pregasse invadir o Congresso e o Supremo.
O autoritarismo, por sua vez, é um fenômeno
que sempre assombrou diferentes continentes – América Latina, Ásia, África e
mesmo partes da Europa –, sendo permanente tentação daqueles que chegam ao
poder.
Em democracias recentes, parte das novas
gerações já não tem na memória o registro dos desmandos das ditaduras, com seu
cortejo de intolerância, violência e perseguições. Por isso mesmo, são presas
mais fáceis dos discursos autoritários.
Uma das estratégias do autoritarismo, dos
que anseiam a ditadura, é criar um ambiente de mentiras, no qual as pessoas já
não divergem apenas quanto às suas opiniões, mas também quanto aos próprios
fatos. Pós-verdade e fatos alternativos são palavras que ingressaram no
vocabulário contemporâneo e identificam essa distopia em que muitos países
estão vivendo.
Uma das manifestações do autoritarismo pelo
mundo afora é a tentativa de desacreditar o processo eleitoral para, em caso de
derrota, poder alegar fraude e deslegitimar o vencedor.
Visto o cenário mundial, falo brevemente
sobre o Brasil e os ataques sofridos pela Justiça Eleitoral.
REFERÊNCIAS AO TSE E AO PROCESSO ELEITORAL
1. No tom, com o vocabulário e a sintaxe
que é capaz de manejar, o Presidente da República fez os seguintes comentários
que dizem respeito à Justiça Eleitoral e que passo a responder.
“A
alma da democracia é o voto”.
De fato, o voto é elemento essencial da
democracia representativa. Outro elemento igualmente fundamental é o debate
público permanente e de qualidade, que permite que todos os cidadãos recebam
informações corretas, formem sua opinião e apresentem seus argumentos. Quando
esse debate é contaminado por discursos de ódio, campanhas de desinformação e
teorias conspiratórias infundadas, a democracia é aviltada. O slogan para o
momento brasileiro, ao contrário do propalado, parece ser: “Conhecerás a mentira
e a mentira te aprisionará”.
“Não podemos admitir um sistema eleitoral
que não fornece qualquer segurança”.
As urnas eletrônicas brasileiras são
totalmente seguras. Em primeiro lugar, elas não entram em rede e não são
passíveis de acesso remoto. Podem tentar invadir os computadores do TSE (e
obter alguns dados cadastrais irrelevantes), podem fazer ataques de negação de
serviço aos nossos sistemas, nada disso é capaz de comprometer o resultado da
eleição. A própria urna é que imprime os resultados e os divulga. Os programas
que processam as eleições têm o seu código fonte aberto à inspeção de todos os
partidos, da Polícia Federal, do Ministério Público e da OAB um ano antes das
eleições. Estará à disposição dessas entidades a partir de 4 de outubro próximo.
Inúmeros observadores internacionais examinaram o sistema com seus técnicos e
atestaram a sua integridade. Ainda hoje, daqui a pouco, anunciarei os
integrantes da Comissão de Transparência das Eleições, que vão acompanhar cada
passo do processo eleitoral. Nunca se documentou qualquer episódio de fraude. O
sistema é certamente inseguro para quem acha que o único resultado possível é a
própria vitória. Como já disse antes, para maus perdedores não há remédio na
farmacologia jurídica.
“Nós
queremos eleições limpas, democráticas, com voto auditável e contagem pública
de votos”.
As eleições brasileiras são totalmente
limpas, democráticas e auditáveis. Eu não vou repetir uma vez mais que nunca se
documentou fraude, que por esse sistema foram eleitos FHC, Lula, Dilma e
Bolsonaro e que há 10 (dez) camadas de auditoria no sistema. Agora: contagem
pública manual de votos é como abandonar o computador e regredir, não à máquina
de escrever, mas à caneta tinteiro. Seria um retorno ao tempo da fraude e da
manipulação. Se tentam invadir o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal
Federal, imagine-se o que não fariam com as seções eleitorais! As eleições
brasileiras são limpas, democráticas e auditáveis. Nessa vida, porém, o que
existe está nos olhos do que vê.
“Não podemos ter eleições onde (sic) pairem
dúvidas sobre os eleitores”.
Depois de quase três anos de campanha
diuturna e insidiosa contra as urnas eletrônicas, por parte de ninguém menos do
que o Presidente da República, uma minoria de eleitores passou a ter dúvida
sobre a segurança do processo eleitoral. Dúvida criada artificialmente por uma
máquina governamental de propaganda. Assim que pararem de circular as mentiras,
as dúvidas se dissiparão.
“Não posso participar de uma farsa como
essa patrocinada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral”
O Presidente da República repetiu,
incessantemente, que teria havido fraude na eleição na qual se elegeu. Disse
eu, então, à época, que ele tinha o dever moral de apresentar as provas. Não
apresentou. Continuou a repetir a acusação falsa e prometeu apresentar as
provas. Após uma live que deverá figurar em qualquer futura antologia de
eventos bizarros, foi intimado pelo TSE para cumprir o dever jurídico de apresentar
as provas, se as tivesse. Não apresentou. É tudo retórica vazia. Hoje em dia,
salvo os fanáticos (que são cegos pelo radicalismo) e os mercenários (que são
cegos pela monetização da mentira), todas as pessoas de bem sabem que não houve
fraude e quem é o farsante nessa história.
“Não é uma pessoa no Tribunal Superior
Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável”.
Não sou eu que digo isso. Todos os
ex-Presidentes do TSE no pós-88 – 15 Ministros e ex-Ministros do STF – atestam
isso. Mas, na verdade, quem decidiu que não haveria voto impresso foi o
Congresso Nacional, não foi o TSE. A esse propósito, eu compareci à Câmara dos
Deputados após três convites: da autora da proposta, do Presidente da Comissão
Especial e um convite pessoal do Presidente daquela Casa. Não fiz ativismo
legislativo. Fui insistentemente convidado. Lá expus as razões do TSE. Não
tenho verbas, não tenho tropas, não troco votos. Só trabalho com a verdade e a
boa fé. São forças poderosas. São as grandes forças do universo. A verdade
realmente liberta. Mas só àqueles que a praticam. Foi o Congresso Nacional –
não o TSE – que recusou o voto impresso. E fez muito bem. O Presidente da
Câmara afirmou que após a votação da Proposta, o assunto estaria encerrado.
Cumpriu a palavra. O Presidente do Senado afirmou que após a votação da
Proposta, o assunto estaria encerrado. Cumpriu a palavra. O Presidente da
República, como ontem lembrou o Presidente da Câmara, afirmou que após a
votação da proposta o assunto estaria encerrado. Não cumpriu a palavra. Seja
como for, é uma covardia atacar a Justiça Eleitoral por falta de coragem de
atacar o Congresso Nacional, que é quem decide a matéria.
Conclusão:
Insulto não é argumento. Ofensa não é
coragem. A incivilidade é uma derrota do espírito. A falta de compostura nos
envergonha perante o mundo. A marca Brasil sofre, nesse momento, uma
desvalorização global. Somos vítimas de chacota e de desprezo mundial.
Um desprestígio maior do que a inflação, do
que o desemprego, do que a queda de renda, do que a alta do dólar, do que a
queda da bolsa, do que o desmatamento da Amazônia, do que o número de mortos
pela pandemia, do que a fuga de cérebros e de investimentos. Mas, pior que
tudo, nos diminui perante nós mesmos. Não podemos permitir a destruição das
instituições para encobrir o fracasso econômico, social e moral que estamos
vivendo.
A democracia tem lugar para conservadores,
liberais e progressistas. O que nos une na diferença é o respeito à
Constituição, aos valores comuns que compartilhamos e que estão nela inscritos.
A democracia só não tem lugar para quem pretenda destruí-la.
Com a bênção de Deus – o Deus do bem, do amor e do respeito ao próximo – e a proteção das instituições, um Presidente eleito democraticamente pelo voto popular tomará posse no dia 1º de janeiro de 2023.
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