O Estado de S. Paulo
A defesa das instituições está longe de se
restringir à esquerda ou mesmo aos setores que se autodefinem como
progressistas.
Nas nossas sociedades o centro político não
é a região habitada pelos mornos – os que não são nem quentes nem frios – de
que nos falam as Escrituras e
que, por isso, serão impiedosamente vomitados no Apocalipse. Ao contrário, há
teóricos para quem o centro é o “lugar” em que se cruzam e se confrontam por
vezes com contundência, e também entram em algum tipo de acordo, as diversas
propostas hegemônicas presentes na comunidade política. E, se de hegemonia se
trata, sempre há movimento e mudança, sempre se registram avanços e recuos, mas
nunca a eliminação física ou espiritual do adversário. O centro, em suma,
move-se, indica o estabelecimento (provisório) de equilíbrios mais ou menos
progressistas, mais ou menos permeáveis aos impulsos democratizadores.
A existência de um centro é o que nos permite logicamente identificar a presença de forças desestabilizadoras e, portanto, ex-cêntricas. Estas aparecem como risco e ameaça, especialmente quando são vetores de destruição pura e simples e dão vazão a forças irracionais em períodos de intensa mudança social. Como diz a frase famosa, em tais períodos tudo o que é sólido se desfaz no ar, e o desafio de entender e assimilar dialeticamente os novos termos do mundo – desafio que indivíduos sensatos se colocam – pode ser varrido por uma vontade particularmente anômala de retornar a um passado harmonioso, mas inexistente.
Este risco e esta ameaça operam
concretamente entre nós. E operam não como força evanescente, mas como
realidade política concreta. A direita dita iliberal, ou antiliberal, tem nossa
democracia como seu troféu desde 2018. O rastro de destruição está à vista de
todos e se estende do meio ambiente ao mundo da cultura, das normas básicas de
civilidade aos fundamentos do Estado democrático. Particularmente perverso o
ataque desferido contra a ciência e seus pressupostos em tempo de pandemia e
num país, como o nosso, de firme adesão prática a regras sanitárias. A
perversidade se conta, como sabemos, em algumas centenas de milhares de
compatriotas mortos, muitos deles de modo cruel e desnecessário. Sem exagero
retórico, a maior tragédia nacional em cinco séculos de existência coletiva.
Muito penoso ter testemunhado, desde o
início, a retórica antiestablishment mobilizada
por figuras reconhecidamente menores do próprio establishment em qualquer uma
das suas áreas, na economia ou na política, na vida civil ou na militar. Rancor
e ressentimento foram, e são, os traços distintivos do “estilo de época” que se
impôs a partir de 2018. E não por acaso o “subversivismo elementar” a que tal
estilo serve volta-se violentamente, em primeiro lugar, contra a própria noção
de centro político, tal como acima mencionamos.
Para dar dois exemplos no plano discursivo.
A fala inaugural do presidente da República, ainda no parlatório de Brasília,
traz os elementos mais primários da alucinada guerra ultradireitista de
valores, como, entre outros, a luta contra a “correção política” identificada
com o solerte “socialismo”. E a última “declaração à nação”, na qual o
presidente recua dos graves atropelos institucionais do Dia da Independência,
conclui com o lema integralista (fascista ou filofascista) em desafiadora caixa
alta. Ora, com tais simulacros de ideias, não há como “ir ao centro” para
travar a saudável batalha hegemônica com os demais atores que compõem a
sociedade aberta. A ex-centricidade está
dada, é elemento constitutivo de uma força que, tendo obtido maioria eleitoral,
se inscreve entre as que têm promovido ativamente a “recessão democrática”
destes nossos tempos.
A defesa das instituições está longe de se
restringir à esquerda ou mesmo aos setores que se autodefinem como
progressistas. Recentemente, a propósito, a historiadora Anne Applebaum, ao
deplorar a metamorfose do velho Partido Republicano em instrumento da “grande
mentira” trumpista, chamou a atenção para a importância de haver bons partidos
de centro-direita capazes de esvaziar o chamado selvagem da extrema direita.
Uma consideração realista, que evidentemente se aplica a nós. Os adeptos do
liberalismo político, não importa sua filiação específica, têm uma visão de
mundo por demais sofisticada para regredirem ao território das distopias
organicistas, por definição anuladoras do indivíduo e da tradição iluminista.
A esquerda política, ao menos nas suas
expressões mais significativas, terá de apetrechar-se para sua própria “jornada
ao centro”, afastando-se dos caudilhismos que assolaram a última “onda rosa”
latino-americana. Por certo, divergências legítimas à parte, o ex-presidente
Luiz Inácio da Silva não é a versão espelhada do atual presidente, mas, entre
outros, Hugo Chávez ou Nicolás Maduro o são, razão pela qual nenhuma
complacência é possível ou justificável. De resto, só uma esquerda finalmente
animada pela ideia da “democracia (política) como valor universal” poderá
reivindicar para si coerência programática e lealdade institucional, mais além
das tentações iliberais que periodicamente costumam rondá-la. Hic Rodhus.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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