terça-feira, 7 de junho de 2022

Luiz Gonzaga Belluzzo*: A tirania dos homens de bem

Valor Econômico

No Brasil, as transições sempre acontecem para impedir que o passado fique no passado

 “Nós defendemos o armamento para o cidadão de bem, porque entendemos que a arma de fogo, além de uma segurança pessoal para as a famílias, ela também é a segurança para a nossa soberania nacional e a garantia de que a nossa democracia será preservada”. Assim falou Bolsonaro no dia 17 de maio de 2022.

“Cidadão de bem” é a expressão que denuncia as desavenças de Bolsonaro com os princípios que regem a convivência social ao abrigo do Estado Moderno. As formações políticas que se consolidaram desde a Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não admitem aos cidadãos invocar a própria santidade, honestidade ou boa consciência para contestar a universalidade da lei ou os procedimentos legais.

Seria uma insanidade, no mundo moderno, substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos.

Não apenas aqui, neste Brasil de tantos atrasos e tantas ignorâncias, mas no mundo inteiro a crise de legitimação do Estado vem suscitando “ondas regressivas” de apelo às falsidades da consciência moralista e hipócrita, em prejuízo da segurança dos cidadãos.

As reflexões mais profundas sobre a ética da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons sentimentos, da palavra de honra.

É oportuno invocar a sabedoria de Thomas Hobbes: “... cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim perdurando, esse direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá haver segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver durante todo o tempo que a Natureza permitiu que vivesse”.

Hobbes rejeitou a visão do “estado de natureza” como um passado idílico em que os homens conviviam pacificamente, em que o homem era naturalmente bom. A convivência pacífica só pode surgir na sociedade em que o Estado está consolidado, e a sociedade civil está submetida às leis emanadas do Soberano. Sublinho a palavra leis. O soberano tem o dever primordial de garantir a segurança de todos os cidadãos contra as ameaças de violência de uns poucos.

Na Filosofia do Direito, Hegel condena as queixas e reações contra a involução que pretende impor a moral particularista. “São não apenas errôneos estes protestos, mas revelam um apego malsão à sua própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade”.

Emile Durkheim ensina que para Rousseau e Kant, “as únicas formas morais de agir são aquelas que podem se adequar a todos os homens indiscriminadamente, ou seja, que estão envolvidas na noção de homem em geral”.

A Modernidade carrega em seu Espírito a missão de universalizar os direitos e as obrigações enquadrados na formalidade da lei. Quando o Espírito descuida, acordam os pequenos demônios da opressão, do particularismo e da submissão dos indivíduos à vontade de outros indivíduos. Essa é a essência da liberdade dos que se manifestam nas ruas, clamando pelo fechamento do STF.

A tirania dos cidadãos de bem ensina que o indivíduo é naturalmente bom, capaz de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, ao contrário, são corruptas e corruptoras. Para essa gente, os compromissos típicos da democracia são obstáculos para a realização da “verdadeira justiça”, aquela que está, desde o útero materno, no coração dos homens. As instituições da sociedade, sobretudo o Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de punição insuficientemente rigorosos, tornam a Justiça uma farsa, um procedimento burocrático e ineficaz.

A história, sobretudo a nossa, está aí para mostrar que nenhum regime despótico deixou de invocar, nos seus momentos preambulares, as virtudes, excelências e a superioridade de sentimentos dos “homens que vieram para praticar o bem”.

No nosso Brasil, as transições sempre acontecem para impedir que o passado fique no passado. A memória, enquanto reflexão sobre o que passou, vai se apagando depressa, na mesma velocidade com que se rearmam as forças e os interesses que comandaram os grandes desastres e desatinos. A memória nacional é fraca porque o passado não passa e a história parece um processo descontínuo e recorrente que Sérgio Buarque de Holanda chamou de procissão de milagres

O sistema de forças que se abrigava sob a pele do regime militar sobreviveu incólume à transição democrática. Pior que isso, durante estes anos de observância das regras democráticas cresceu sem parar o poder de veto e de bloqueio destas forças sobre qualquer iniciativa política ou econômica capaz de alterar o status quo.

Há quem não perceba que cultivamos estes primitivismos e esteja disposto a jurar que por aqui ainda predomina o homem cordial, afetuoso e disposto ao perdão e à amizade. Neste caso, a ignorância nativa está se valendo da falsificação de um conceito elaborado por Sérgio Buarque - o homem cordial - para designar um comportamento típico: avesso às normas gerais, impessoais e igualitárias, e inclinado às relações de compadrio, ao favorecimento, ao particularismo, à reafirmação das desigualdades. Para os amigos tudo, para os inimigos...

Somos, na verdade, muito mais iguais ao que fomos no passado. Somos, afinal, nossos próprios fantasmas. Nossos mortos somos nós e assim não temos as lições do passado, mas a eternidade da recorrência e da mesmice. Somos inimitáveis e originais, por certo, nas celebrações e nos escândalos. Aí sim, escancaramos a alma e produzimos espetáculos deslumbrantes, feéricos. O mundo se curva, entre estarrecido e deslumbrado, diante da torpeza inocente, translúcida, da baixaria sem preconceitos, franca e risonha.

Faltam-nos os momentos de seriedade trágica, aquele instante fundador em que o declínio do velho é substituído apenas por sinais, indícios, débeis movimentos do novo, que obrigam o homem a se decidir ainda suspenso entre dois mundos. Nossa história é na verdade uma procissão de milagres.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, recebeu recentemente da Universidade Federal de Goiás o título de Doutor Honoris Causa.

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