Folha de S. Paulo
Tivemos uma semana quente no campo da
defesa da democracia
Ninguém de bom juízo discorda do fato de
que as democracias precisam se defender de seus inimigos. O diabo é definir até
onde podem ir em sua autodefesa. A resposta maquiavélica é que podem fazer tudo
aquilo que for necessário para aplacar os que conspiram contra o regime:
"o fogo dever ser respondido com fogo".
Essa, porém, não é uma resposta aceitável
para regimes fundados no império da lei e na gramática dos direitos humanos.
Nesses regimes, "o direito não pode tirar férias", mesmo que seja em
nome da democracia.
Isso significa que as democracias constitucionais devem criar mecanismos legais e institucionais para se autodefender. Devem definir que direitos podem ser restringidos e em que circunstâncias, como fizeram a Constituição e a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, de 2021. Também é necessário definir um sistema institucional de proteção, em que a omissão de um dos responsáveis por proteger a democracia não paralise todo o aparato de defesa. Afinal, uma das artimanhas de autocratas é capturar as agências de controle.
Digo isso porque tivemos uma semana quente
no campo da defesa da democracia. Descobriu-se que, na antessala do
ex-presidente Bolsonaro, o ex-major Ailton Barros expôs ao coronel Mauro
Cid, ex-ajudante de ordem presidencial, seu plano de golpe: "Se
preciso for, vai ser fora das quatro linhas... deve ser dada a missão ao
comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiás de prender o Alexandre de
Moraes no domingo". Trata-se do mesmo militar aposentado suspeito de
falsificar certificado de vacina para o ex-presidente e de se gabar em saber
quem matou Marielle Franco.
Como aponta o depoimento de George
Washington de Souza, empresário bolsonarista, igualmente preso após
planejar a explosão de um caminhão tanque próximo ao aeroporto de Brasília, em
dezembro de 2022: "Eu resolvi elaborar um plano com os manifestantes do QG
do Exército para provocar a intervenção das Forças Armadas".
Maquinações alopradas? Sem dúvida. Mas que
se encontram em profunda sintonia com inúmeras manifestações do ex-presidente e
de seu ministros, que culminaram com a intentona de 8 de janeiro. Basta lembrar
os discursos de 7 de Setembro de Bolsonaro.
Como bem salientou o ministro Edson Fachin
(relator da ADPF 572) ao julgar a validade dos primeiros inquéritos relativos
aos atos antidemocráticos abertos pelo Supremo: "Nenhuma disposição do
texto Constitucional pode ser interpretada ou praticada no sentido de permitir
a grupos ou pessoas suprimirem o gozo e o exercício dos direitos e garantias
fundamentais".
Num contexto de "risco efetivo"
às instituições democráticas e de "ausência de atuação" dos demais
"órgãos de controle", cumpriria, sim, à Justiça Constitucional
assumir uma postura "militante" na defesa do Estado democrático de
Direito.
A democracia brasileira deve muito ao
Supremo nos últimos anos. Os fatos têm demonstrado a materialidade das
intenções golpistas urdidas, inclusive, na antessala da Presidência. Sem os
inquéritos presididos por Alexandre de Moraes, dificilmente sobreviveríamos a
esse pântano.
A preservação da autoridade do Supremo, no
entanto, passa pela disposição desse tribunal em transferir paulatinamente a
outras instâncias do sistema de Justiça a apuração e determinação das
responsabilidades dos que atentaram contra a democracia.
Como alerta o ministro Fachin, na mesma
ADPF 572, é preciso cuidar para que "a dose do remédio não o torne um
veneno".
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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