O Globo
Bolsonaristas de alto e baixo escalão
parecem praticar um ceticismo seletivo
A prisão de
auxiliares de Jair Bolsonaro acusados de fraudar comprovantes
de vacinação para que o ex-presidente pudesse viajar para o exterior resgata
uma pergunta fundamental: em que medida os discursos da direita populista são
respaldados por crença? Em outras palavras: as lideranças populistas acreditam
mesmo nos discursos conspiratórios que divulgam nas redes sociais?
Bolsonaro decretara sigilo sobre seu cartão de vacinação. Acreditava-se que o sigilo ocultava uma contradição: Bolsonaro teria se vacinado — porque era a coisa sensata a fazer em meio à pandemia —, mas escondido de seus apoiadores para não parecer que suas decisões pessoais estavam em desacordo com a desconfiança que lançava sobre a segurança dos imunizantes.
Agora, a situação se esclareceu. Bolsonaro
não se vacinou e não vacinou a filha. Tentou fraudar os registros, ao que tudo
indica, para poder viajar para os Estados Unidos. Realmente não confiava
na vacina,
a ponto de pôr sua própria vida e a da filha em risco.
Nos Estados Unidos, a questão também foi
recentemente levantada depois da revelação de documentos no processo de
difamação que a empresa de máquinas de votar Dominion moveu contra a rede de TV
trumpista Fox News.
Comentaristas e apresentadores da Fox
questionaram a confiabilidade das urnas eletrônicas nas eleições presidenciais
de 2020. A Dominion alegou que foi difamada, que a Fox mentiu deliberadamente
prejudicando sua reputação. Para caracterizar a difamação no processo, seria
preciso provar que a Fox sabia que as urnas não haviam sido fraudadas e, mesmo
assim, publicou as alegações mentirosas.
Era um caso dificílimo de vencer, mas, por
meio do processo, a Dominion obteve acesso a diversos e-mails de executivos,
jornalistas e apresentadores da Fox em que eles demonstravam não acreditar que
as eleições haviam sido fraudadas. O dono da Fox, Rupert Murdoch, chegou a
mandar um e-mail dizendo que a tese da fraude “era uma coisa muito doida”.
Encurralada pelas evidências de que difundira uma tese que sabia ser falsa, a
Fox encerrou o processo com um acordo milionário.
No Brasil, ficou evidente que Bolsonaro
realmente acreditava na tese de que as vacinas eram perigosas. Nos Estados
Unidos, foi o contrário. Ficou evidente que a Fox News não acreditava na tese
da fraude e a difundiu apenas para manter a audiência trumpista.
Afinal, as lideranças da direita populista
acreditam nas teses conspiratórias que difundem? Será mesmo que creem que as
urnas eletrônicas são sistematicamente fraudadas, que as vacinas são ineficazes
e perigosas, que a pandemia foi um complô entre a China e a OMS e
que o Supremo Tribunal Federal está tomado por comunistas?
Há sinais, pelo menos no Brasil, de que as
teses conspiratórias têm impacto nas lideranças. O governo Bolsonaro fez
grandes esforços para investigar a segurança das urnas eletrônicas, convocando
especialistas e apurando todo tipo de denúncia. Não encontrou nenhum indício de
fraude, mas a falta de provas não aplacou a desconfiança. O mesmo aconteceu com
os inúmeros movimentos institucionais para tentar comprovar que Adélio Bispo
esfaqueou Bolsonaro a mando da esquerda. Nada de muito relevante foi
encontrado, mas a desconfiança permaneceu.
A dúvida que persiste depois da
investigação sugere que a pergunta sobre a crença em teorias da conspiração
pode estar mal formulada. Talvez não se trate de lideranças populistas
acreditarem nas teses conspiratórias, mas de elas desconfiarem persistentemente
das explicações dominantes, apoiando-se lateralmente em teses conspiratórias
como explicações alternativas.
O conspiracionismo populista — das
lideranças e da base — parece ser menos uma crença firme na explicação
alternativa do que uma desconfiança persistente na explicação dominante,
oferecida pela ciência, pelo jornalismo ou pela Justiça. Bolsonaristas de alto
e baixo escalão parecem praticar um ceticismo seletivo, que desconfia da
auditoria das urnas eletrônicas pela Unicamp, mas dá ouvidos às alegações
malucas de um hacker de Araraquara.
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