Valor Econômico
Duas decisões recentes ilustram o medo das autoridades em corrigir o que todos sabem que está errado
Na próxima vez que você sair com o seu carro
para um passeio com a família num domingo à tarde, imagine por alguns segundos
a possibilidade de, ao virar uma esquina, serem alvejados com 257 tiros de
fuzil e pistola disparados não por criminosos, mas por agentes do Estado que,
supostamente, são responsáveis pela sua segurança.
A situação parece absurda, mas a probabilidade de ocorrer cresce exponencialmente se você é preto e mora nas comunidades pobres das grandes cidades. E tende a se repetir, dada a complacência com que as autoridades tratam os abusos praticados pelos militares no Brasil.
O resultado do julgamento dos militares que
assassinaram o músico Evaldo Rosa dos Santos e o catador de latinhas Luciano
Macedo evidencia como instituições impregnadas pelo corporativismo perpetuam o
ciclo de insegurança e impunidade que exasperam a nossa sociedade.
Na tarde do dia 8 de abril de 2019, um
domingo, Evaldo seguia tranquilamente com a família para um chá de bebê de
amigos quando seu carro foi metralhado por 12 militares que faziam uma blitz no
bairro de Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro. Evaldo morreu na hora e o
catador Luciano, que estava na calçada e se aproximou para prestar socorro,
também foi fuzilado pelos militares e faleceu alguns dias depois.
Mesmo diante do excesso de evidências sobre a
responsabilidade do tenente, do sargento, do cabo e dos quatro soldados
envolvidos na ação desproporcional que resultou na morte de dois inocentes, o
Superior Tribunal Militar, instância máxima desse ramo do Judiciário
especializado em crimes militares, abrandou de forma vergonhosa as penas.
Em ambos os casos prevaleceu a tese do
relator, Carlos Augusto Amaral, que inocentou os militares pela morte de Evaldo
por falta de provas, cogitando a possibilidade de o músico ter sido morto
durante uma troca de tiros entre os militares e assaltantes que estariam
passando pelo local no momento.
No caso de Luciano, o STM caracterizou o
crime como homicídio culposo (sem intenção de matar), sob a hipótese de que os
membros do Exército teriam agido em legítima defesa putativa, tendo disparado
os tiros por acreditarem que estavam em perigo. A pena máxima foi estabelecida
em 3 anos e 10 meses, a ser cumprida em regime aberto.
A avaliação da viúva de Evaldo sobre o
veredito do STM resume bem a que se presta esse órgão do Judiciário brasileiro:
“Todos eles aqui são uma cúpula; votaram da forma que votaram pra limpar a
imagem do Exército Brasileiro.”
Ela tem razão. Além de continuarem usufruindo
de um ramo especial da Justiça para julgar os crimes que cometem, os militares
ainda dominam a sua instância máxima. O STM é composto por 15 ministros, sendo
10 indicados pelas Forças Armadas e apenas 5 civis. Com a maioria dos votos
favorecendo os militares, é muito elevada a chance de prevalecerem no STM
decisões pautadas pelo corporativismo, e não pela análise fria dos fatos e da
legislação aplicável - como aconteceu no julgamento dos fardados que assassinaram
Evaldo e Luciano.
A injustiça praticada contra a família e a
memória dos inocentes expressa a conivência dos ministros do STM em não punir
seus pares, mas também é fruto da covardia da classe dominante brasileira
(presidente da República, congressistas e ministros do Supremo Tribunal
Federal), que mantém uma série de regalias para os militares mesmo diante de
todos os atentados praticados contra a democracia brasileira no passado próximo
e distante.
Conivência e covardia, aliás, também falaram
mais alto na votação do ajuste fiscal ocorrida na semana passada. Na proposta
apresentada pelo governo, havia um dispositivo que determinava que o pagamento
de verbas acima do teto remuneratório do serviço público deveria ser
disciplinado por lei complementar.
Cedendo a pressões das associações de
magistrados e de integrantes do Ministério Público, o relator da PEC nº
31/2007, deputado Moses Rodrigues (União-CE) permitiu não apenas que seus
penduricalhos sejam criados por legislação ordinária, como autorizou expressamente
que eles continuem recebendo acima do teto até a aprovação da tal lei.
No ano de 2023 pelo menos 3.790 juízes e
desembargadores brasileiros receberam mais de R$ 1 milhão ao longo do ano,
segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. A situação não é diferente no
Ministério Público, com a diferença de que o conselho que rege esse órgão não
preza pela transparência dos dados de suas folhas de pagamento.
Com a exceção dos integrantes dessas
carreiras, toda a população brasileira, inclusive a classe política, reconhece
que há abusos remuneratórios a favor dessa elite togada. Estabelecer limites
razoáveis aos seus ganhos teria amplo respaldo da sociedade - no entanto, o
governo, deputados, senadores e até os ministros do Supremo tremem diante das
ameaças veladas de juízes, promotores e procuradores.
Diante da covardia e conivência da classe
política, na próxima vez que preencher a sua declaração de imposto de renda,
imagine por alguns segundos que os ganhos acima do teto de milhares de juízes e
membros do Ministério Público são isentos do tributo que você pagará.
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