O Globo
Resta ao Senado restaurar pelo menos em parte
a credibilidade da classe política brasileira, derrubando a PEC da Blindagem
A impressão de fim de feira que o Congresso passa à opinião pública cobrará um preço alto em credibilidade de seus futuros integrantes, mesmo que eles não liguem muito para isso, mas apenas para a reeleição, que consideram garantida pelo volume de dinheiro com que podem contar, saído dos indecentes fundos eleitoral e partidário. Só a premissa de que poderão se reeleger dependendo do dinheiro que possam gastar na campanha, e não pela atuação no exercício do cargo, já demonstra o que a maioria dos parlamentares pensa sobre si e seus pares e, além deles, sobre os eleitores brasileiros.
Se a veleidade se confirmar, teremos um
índice de renovação quase nulo na prática, pois a maioria dos “novos”
parlamentares serão os velhos políticos de sempre, que deixam de ser prefeitos
para ser deputados federais, que deixam de ser senadores para ir para a Câmara,
ou vice-versa. Todas as negociações em andamento são indecentes, quando se sabe
que houve votos a favor da blindagem de Suas Excelências em troca da promessa
de contenção da anistia ampla, geral e irrestrita que os bolsonaristas queriam
enfiar goela abaixo da opinião pública.
A anistia generalizada é uma ofensa a homens
e mulheres de bem do país. Mas exigir a impunidade total em troca de uma
anistia restrita — ou ameaçar com a volta da anistia total alegando
descumprimento de acordo espúrio de bastidores — é exibir publicamente falta de
pudor num nível bastante elevado, mesmo para um Congresso como este, que bate o
recorde de ações amorais.
A impunidade dos parlamentares, incluindo
presidentes de partidos que não têm mandato, mostra claramente que a maioria
tem receio de explicar o que fez com o dinheiro arrecadado com as emendas
parlamentares, y otras cositas más. É a ação do ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF), ex-senador e governador maranhense Flávio Dino que provoca o
alvoroço todo. Ele simplesmente exige transparência, impessoalidade,
responsabilidade na distribuição do dinheiro público e provoca a ira dos
parlamentares que não querem, por ser impossível, revelar o que foi feito do
dinheiro das emendas que enviaram a prefeituras amigas, a parentes e aderentes.
Incomoda a exigência de prestação de contas
das emendas, como se o dinheiro fosse deles. Está aí uma questão que vai além
da moral pública, reflete a distorção da função pública que de há muito assola
o país. Não saber diferenciar o público do privado é um mal comum entre nós,
que corrói a credibilidade do Congresso, mas não apenas dele. Todo o sistema
político-partidário que viceja nesse conluio espúrio fica desacreditado diante
da sociedade. A partir daí, as decisões nascidas dele perdem a força de
representação da vontade majoritária do eleitorado.
Dizer que um Congresso capaz de medidas de
autoproteção como essas representa a sociedade, por isso tem de ser respeitado,
é uma ofensa ao povo brasileiro. É exatamente por essas e outras manobras
burocráticas a viciar o resultado das urnas que o Congresso perde a
representatividade do povo brasileiro para se transformar em representante de
guildas, corporações, lobistas, até criminosos mais explícitos como os
integrantes das facções bandidas que se infiltram nas instituições justamente
pelas brechas legais e pelo sistema de proteções que faz deles membros
pretensamente respeitáveis.
Resta ao Senado restaurar pelo menos em parte
a credibilidade da classe política brasileira, derrubando a PEC da Blindagem e
propondo uma alteração das penas sem que o caráter pedagógico delas, ditado
pelo STF, seja desperdiçado. O julgamento da tentativa de golpe, ainda em curso
no Supremo, foi um ponto alto da defesa da democracia. Esperemos que não seja
desperdiçado por medidas casuísticas, como já perdemos a oportunidade algumas
vezes nas últimas décadas.
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