Cristian Klein
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Uma elite comprometida com os valores democráticos, preocupada com o impacto das desigualdades na preservação da democracia e que se sente culpada por seu egoísmo. Esse retrato pode parecer surpreendente, mas é a imagem das elites latino-americanas captada por estudo inédito, realizado pelo Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri) da Universidade de São Paulo (USP). Intitulada "Percepção das Elites Latino-Americanas sobre as Desigualdades Sociais e a Democracia", a pesquisa entrevistou, no ano passado, 829 representantes das elites de seis países do continente: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, México e Venezuela. Como elite foram consideradas as pessoas com capacidade de influenciar seus pares e os destinos da nação nas áreas econômica, política, sindical, cultural, acadêmica e jornalística.
Para uma América Latina cujos estratos mais elevados da sociedade estiveram historicamente associados ao conservadorismo, ao descaso com a agenda social e à tentação autoritária, o resultado chama a atenção. De acordo com os pesquisadores, esses dados seriam reflexo de uma mudança de comportamento.
Em primeiro lugar, todas as elites dos seis países demonstraram ter alto apreço pela democracia. No geral, 91,1% responderam que o regime democrático é "sempre a melhor forma de governo". Apenas na Bolívia e no Chile o apoio a regimes autoritários encontrou respaldo maior, ainda assim marginal.
O mais surpreendente é o mea-culpa feito pelos membros do topo da pirâmide social desses países, segundo o coordenador do Nupri, Rafael Villa. Entre os fatores que são considerados obstáculos à democracia no continente, o "egoísmo das elites" foi a resposta que obteve uma das maiores pontuações - média 8 - numa escala de 0 a 10.
"É uma mudança importante na mentalidade dessas elites. Embora o Estado tenha muitos deveres na solução dos problemas, a elite chama a responsabilidade para si e admite que também tem sua parcela de culpa. É um elemento positivo", afirma Villa, professor de ciência política da USP. "No passado, havia a visão muito paternalista de que o Estado tinha que resolver tudo, apesar do discurso liberal das camadas mais altas", prossegue.
Acima do egoísmo das elites, a pobreza e a desigualdade social - que atingiram o escore 9 - foram apontados como os fatores que mais influenciam negativamente a democracia. Esse resultado, em princípio, carregaria um significado ambíguo. Poderia indicar tanto uma preocupação das elites com a solução desses problemas quanto o simples temor de que eles se transformem numa ameaça às regras do jogo, facilitando o populismo de líderes carismáticos que alterem radicalmente o status quo.
Mas, ao se analisarem as respostas dadas a outras três perguntas da pesquisa, o quadro fica mais claro. Quando postas diante da questão "a democracia formal não basta para resolver a imensa desigualdade social na América Latina", há uma grande variação entre as elites de cada país. As do Brasil (69,1%) e da Venezuela (38%) foram as que mais concordaram com a frase.
As do Chile (78,7%) e da Bolívia (85,4%), as que mais discordaram. A elite brasileira, contudo, é a única que afirma, maciçamente, que a democracia formal, minimalista - ou seja, aquela baseada apenas no respeito ao jogo eleitoral e à formação de governos, com eleições livres e secretas - não é suficiente para combater a desigualdade, o que estaria a indicar sua adesão a uma democracia mais substantiva, isto é, que garanta, de fato, alguns direitos fundamentais e a justiça social.
"Em relação ao Brasil, esses resultados não são tão surpreendentes. Os conservadores no país não são antissociais. São favoráveis a se dar proteção aos pobres, à justiça social", afirma José Augusto Guillon de Albuquerque, professor da USP e um dos quatro coordenadores da pesquisa, que também teve apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Observatory on Inequality in Latin America, do Center for Latin American Studies da Universidade de Miami.
Para Albuquerque, a direita brasileira é mais ideológica e baseia seu discurso em outros assuntos, como a menor interferência do Estado na economia. "Não questiona tanto a necessidade de melhor distribuição de renda. Está longe de carregar aquele neoconservadorismo de certa elite americana", diz.
Um segundo ponto que confirmaria o autêntico interesse das elites latinas por um mundo mais equânime diz respeito a que modelo econômico elas preferem. O exemplo escandinavo, o mais bem acabado de Estado de bem-estar social ("welfare state"), foi o mais citado. Foi escolhido por 30,8%, à frente do modelo da União Europeia (26%) e dos Tigres Asiáticos (14,9%). O padrão altamente liberal americano obteve apenas 5,9% das preferências. Ficou atrás até da Aliança Bolivariana (formada por sete países, entre os quais Venezuela, Bolívia, Cuba e Nicarágua), com 8,1%.
Uma terceira amostra da inclinação das elites a uma maior justiça social tem a ver com o tema prioritário da agenda pública. Questionadas sobre qual o principal objetivo de um governo, as elites dividiram seu maior apoio entre as opções "melhorar os índices educacionais" (Brasil, Chile e Bolívia) e "erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades" (Argentina, Venezuela e México). Assuntos geralmente associados a uma pauta conservadora, de direita, como "garantir a ordem e a segurança pública", "integrar a economia no mercado mundial" e "garantir o crescimento econômico" aparecem em segundo ou terceiro planos.
Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), é um exemplo desse pensamento da elite revelado pela pesquisa. Ele lembra que a conquista da democracia, tanto no Brasil quanto nos demais países da América Latina, não foi acompanhada pela inclusão social. E, como "não conseguimos vencer a pobreza, temos uma dívida social ainda a ser resgatada", diz o empresário. "Não acredito em uma fórmula mágica para chegarmos à plena democracia com igualdade social, mas existem vários ingredientes que nos ajudariam, e muito, a chegar lá", comenta. Entre eles estariam: instituições sólidas e respeitadas, educação e saúde de qualidade acessível a todos, segurança jurídica e capacidade de promover o desenvolvimento sustentado da economia. "O que precisamos é promover a globalização da elite, da riqueza, e não a da fome e a da miséria", afirma Skaf, que foi um dos entrevistados da pesquisa.
Diante de tantos sinais, restaria alguma dúvida sobre o suposto novo pendor democrático e equitativo das elites latino-americanas? Para o professor da Universidade Federal do Paraná Renato Perissinotto, estudioso do tema elites políticas, esses resultados não refletem uma "manifestação cínica". É que prevalece hoje um consenso tão grande sobre o que é a boa sociedade - ou seja, uma democracia liberal associada a um Estado de bem-estar social, combinação idílica dos países escandinavos - que fica muito difícil para qualquer indivíduo, sobretudo para os detentores de funções públicas, assumir posição contrária a pilares desses modelos, como a competição política e as políticas sociais.
Os temas sociais, segundo Perissinotto, são quase inescapáveis. Não daria para deixá-los de lado, seja por razões humanitárias ou por um realismo político praticado pelas elites, que preferem ceder alguns anéis, num ambiente de tranquilidade, a ver algum líder ou movimento radical defendendo cortes e rupturas capitais.
"O ponto a ressaltar é até onde vão, quais são os limites da disposição reformista da elite para resolver os problemas sociais. Porque, a partir de um determinado nível da distribuição de renda, o jogo é claramente de soma zero, ou seja, para um ganhar, o outro tem que perder. E, nesse caso, o ambiente torna-se muito mais competitivo", diz Perissinotto.
O caso da elite boliviana pode ilustrar até onde vai esta disposição. Sentindo-se acuada desde que o presidente Evo Morales assumiu o governo e iniciou profundas alterações - de caráter nacionalista e fortemente voltadas para reivindicações das camadas mais pobres da população - ela demonstra, claramente, seu descontentamento com as políticas sociais em curso. Nesse contexto de inflexão histórica, a sombra de Morales parece estar presente em várias das respostas da pesquisa.
É a elite que mais exige a preservação do regime democrático como principal tarefa de um governo (27,8%). Também é, ao lado da elite venezuelana - que se vê igualmente ameaçada por Hugo Chávez -, a que mais concorda com a frase: "As políticas de distribuição de renda prejudicam os mais competentes" (44,4%). Aqui, há um grande contraste com as elites brasileira e argentina, que são as que mais discordam, total ou parcialmente, da afirmação: 87,7% e 92,8%, respectivamente.
Responsável pela execução da pesquisa na Bolívia, o sociólogo Salvador Romero explica que o baixo apego à democracia no país (apenas 81,1%) vem de dois grupos opostos: por um lado, os setores muito conservadores das elites tradicionais e, por outro, as elites "populares" (líderes de movimentos sociais, sindicais e próximos ao governo) que aderem a uma versão de "democracia autoritária", ou seja, ditada pela maioria, sem respeito à oposição.
Questionados sobre que tipo de presidente resolveria melhor os problemas do seu país, os bolivianos (27%), agora ao lado da elite chilena (26,6%), foram os que menos optaram pela resposta "aquele que toma as decisões ouvindo a população". No Brasil, esse índice foi de 79%, na Argentina, de 63,6%, e no México, 63,3%.
Romero lembra que, em muitos setores da elite, há um profundo temor de que o autoritarismo se instale no país, em virtude de algumas medidas já tomadas pelo governo, como o desmantelamento da maioria das instituições independentes (como o Tribunal Constitucional, a Corte Suprema de Justiça e o Conselho da Judicatura), além das animosidades constantes com os meios de comunicação e declarações agressivas contra a Igreja Católica.
Renato Boschi, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), analisa a situação boliviana sob outro ângulo. Embora não seja adepto do modelo de democracia participativa, que se baseia em consultas à população por meio de plebiscitos e referendos, ele considera que há uma contestação da legimitidade.
Do ponto de vista metodológico, Boschi ressalta que resultados obtidos a partir de respostas de grupos tão diferentes entre si, como ocorre na pesquisa do Nupri, devem ser interpretados com cautela, pois pode haver grande variação entre os países, como visto acima, e, sobretudo, entre os diferentes tipos de elite.
É o caso das respostas dadas a determinados temas pelos distintos segmentos da elite brasileira. Questionadas sobre a redução da interferência do governo na atividade econômica, 59% dos empresários a consideram muito importante, porcentual bem diferente das elites partidária (31%), governamental (24%), da sociedade civil (18%) e sindical (13%).
A divergência entre as opiniões dos líderes empresariais e sindicais é a mais marcante. Enquanto 67% dos membros da elite econômica afirmam que não votariam em políticos acusados por corrupção, 64% dos líderes sindicais responderam que não são influenciados pelas acusações - resultado que pode estar relacionado a uma defesa pragmática do governo Lula, envolvido em 2005 no escândalo do mensalão.
Outro contraste aparece nas respostas sobre que elementos são essenciais à democracia. Entre a elite sindical não há nenhuma menção às opções "aplicação da lei" e "garantir o direito da oposição". Entre os empresários, por outro lado, apenas 2,2% responderam "garantir a participação da população nas decisões do governo". Ou seja, há visões antagônicas sobre como a democracia deve funcionar, claramente influenciadas pelos interesses de classe. De um lado, menos importância ao império da lei e à competição política; do outro, uma desconfiança em relação à participação popular.
Para Marco Marconini, presidente do Conselho de Relações Internacionais da Federação do Comércio de São Paulo (Fecomercio), do mesmo jeito que os sindicalistas têm reclamações em relação aos capitalistas, dizendo que eles só priorizam os lucros, os empresários também criticam as reivindicações políticas dos líderes sindicais.
"O empresário tem, sim, uma certa desconfiança, pois está preocupado com o nível de assistencialismo", afirma Marconini, também um dos entrevistados brasileiros da pesquisa. "O empresário está vendo que isso tem impacto no déficit fiscal, que, por sua vez, afeta os juros e a atividade econômica. Agora, quem não sabe pode achar que não há problema nisso. O ideal é um meio-termo: nem lucros absurdos nem assistencialismo demais, porque fica difícil de viabilizar o país."
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva Santos, rebate a ideia de que programas sociais sejam assistencialistas, ao afirmar que "as elites econômicas é que sempre dependeram e tiveram relações promíscuas com o Estado", por meio de investimentos públicos, subsídios e outras formas de intermediação de interesses. Segundo o líder sindical, é uma incoerência que os empresários critiquem programas como o Bolsa Família, pois eles tiraram 30% das pessoas da miséria absoluta, fortaleceram o mercado interno e teriam favorecido as próprias empresas, que passaram a vender mais. Sobre a pouca importância dada pela elite sindical à aplicação da lei e ao direito da oposição, Santos afirma que, pessoalmente, considera esses elementos essenciais à democracia, mas, por causa do modo como a pergunta foi formulada na pesquisa, teve de priorizar outros aspectos.
Apesar da discrepância nas opiniões das elites econômica e sindical, um ponto as une surpreendentemente (bem como os demais segmentos pesquisados): a descrença no socialismo. Entre a elite da sociedade civil e empresarial, 98% dizem que esse modelo de sociedade não é viável. O porcentual cai entre as elites governamental (89%) e partidária (84%). E, ao contrário das expectativas, também é alto entre os dirigentes sindicais: a maioria, 57%, não acredita no socialismo. O sonho de uma mudança social acabou até para os trabalhadores com mais consciência de classe?
"Hoje a via revolucionária está completamente descartada. O que é o socialismo? A expropriação dos bens de produção e seu controle pelo Estado. Isso mete medo. Nem os sindicatos, que já assimilaram as vantagens da estabilidade econômica, querem. Até por conta da importância que os fundos de pensão adquiriram", afirma Renato Boschi.
O presidente da CUT diz que a maior organização sindical do país continua a defender uma sociedade socialista. Até por ser um ponto que consta no estatuto da entidade. Mas pondera: os modelos é que estão sendo questionados. Não há um pronto, ideal. Nem o modelo soviético - "fechado, centralizador, autoritário", diz - nem o socialismo de mercado da China, tampouco o atual "socialismo do século XXI", capitaneado por Chávez.
"Temos uma situação no mundo, e não só na América Latina, de pleno debate, de mudança de paradigmas, não só dos anteriores à queda do Muro de Berlim como também do neoliberalismo que veio depois. Todos eles caíram, ruíram", afirma Santos. "Agora tudo está em xeque: a distribuição de renda, a sustentabilidade do planeta e a responsabilidade daqueles que implementaram esta sociedade de consumo e levaram ao aquecimento global e à desigualdade.
Quem buscar apenas o caminho da competição e do lucro a qualquer preço vai perder espaço."
A pesquisa sobre as percepções das elites latino-americanas também aferiu quanto o projeto de integração econômica encontra apoio no continente. Brasil e Chile têm as elites menos entusiasmadas. Diante da afirmação "a solução para os problemas sociais do país seria uma integração com os demais países da América Latina", 41,6% dos entrevistados brasileiros e 40,3% dos chilenos discordaram total ou parcialmente da frase.
Curiosamente, a despeito desse ceticismo em relação a uma maior aproximação com os vizinhos, Brasil e Chile são considerados os mais simpáticos, numa lista de 16 países, obtendo, respectivamente, 77,1% e 66,4% de respostas "muito simpático". No outro extremo, foram considerados "nada simpáticos" Estados Unidos (para 45,8%), Venezuela (42,5%), Cuba (31,5%) e Rússia (30,7%).
O perfil ideológico das elites foi aferido numa pergunta que pedia a cada entrevistado que se posicionasse numa escala de 1 (o máximo à esquerda) a 7 (o máximo à direita). Chile (35,8%), Bolívia (34,2%) e Venezuela (25,8%) foram os países onde os representantes das elites mais se declararam de direita (soma das opções 5, 6 e 7). México (18%), Brasil (13,5%) e Argentina (6,1%) revelaram-se os menos direitistas.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Uma elite comprometida com os valores democráticos, preocupada com o impacto das desigualdades na preservação da democracia e que se sente culpada por seu egoísmo. Esse retrato pode parecer surpreendente, mas é a imagem das elites latino-americanas captada por estudo inédito, realizado pelo Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri) da Universidade de São Paulo (USP). Intitulada "Percepção das Elites Latino-Americanas sobre as Desigualdades Sociais e a Democracia", a pesquisa entrevistou, no ano passado, 829 representantes das elites de seis países do continente: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, México e Venezuela. Como elite foram consideradas as pessoas com capacidade de influenciar seus pares e os destinos da nação nas áreas econômica, política, sindical, cultural, acadêmica e jornalística.
Para uma América Latina cujos estratos mais elevados da sociedade estiveram historicamente associados ao conservadorismo, ao descaso com a agenda social e à tentação autoritária, o resultado chama a atenção. De acordo com os pesquisadores, esses dados seriam reflexo de uma mudança de comportamento.
Em primeiro lugar, todas as elites dos seis países demonstraram ter alto apreço pela democracia. No geral, 91,1% responderam que o regime democrático é "sempre a melhor forma de governo". Apenas na Bolívia e no Chile o apoio a regimes autoritários encontrou respaldo maior, ainda assim marginal.
O mais surpreendente é o mea-culpa feito pelos membros do topo da pirâmide social desses países, segundo o coordenador do Nupri, Rafael Villa. Entre os fatores que são considerados obstáculos à democracia no continente, o "egoísmo das elites" foi a resposta que obteve uma das maiores pontuações - média 8 - numa escala de 0 a 10.
"É uma mudança importante na mentalidade dessas elites. Embora o Estado tenha muitos deveres na solução dos problemas, a elite chama a responsabilidade para si e admite que também tem sua parcela de culpa. É um elemento positivo", afirma Villa, professor de ciência política da USP. "No passado, havia a visão muito paternalista de que o Estado tinha que resolver tudo, apesar do discurso liberal das camadas mais altas", prossegue.
Acima do egoísmo das elites, a pobreza e a desigualdade social - que atingiram o escore 9 - foram apontados como os fatores que mais influenciam negativamente a democracia. Esse resultado, em princípio, carregaria um significado ambíguo. Poderia indicar tanto uma preocupação das elites com a solução desses problemas quanto o simples temor de que eles se transformem numa ameaça às regras do jogo, facilitando o populismo de líderes carismáticos que alterem radicalmente o status quo.
Mas, ao se analisarem as respostas dadas a outras três perguntas da pesquisa, o quadro fica mais claro. Quando postas diante da questão "a democracia formal não basta para resolver a imensa desigualdade social na América Latina", há uma grande variação entre as elites de cada país. As do Brasil (69,1%) e da Venezuela (38%) foram as que mais concordaram com a frase.
As do Chile (78,7%) e da Bolívia (85,4%), as que mais discordaram. A elite brasileira, contudo, é a única que afirma, maciçamente, que a democracia formal, minimalista - ou seja, aquela baseada apenas no respeito ao jogo eleitoral e à formação de governos, com eleições livres e secretas - não é suficiente para combater a desigualdade, o que estaria a indicar sua adesão a uma democracia mais substantiva, isto é, que garanta, de fato, alguns direitos fundamentais e a justiça social.
"Em relação ao Brasil, esses resultados não são tão surpreendentes. Os conservadores no país não são antissociais. São favoráveis a se dar proteção aos pobres, à justiça social", afirma José Augusto Guillon de Albuquerque, professor da USP e um dos quatro coordenadores da pesquisa, que também teve apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Observatory on Inequality in Latin America, do Center for Latin American Studies da Universidade de Miami.
Para Albuquerque, a direita brasileira é mais ideológica e baseia seu discurso em outros assuntos, como a menor interferência do Estado na economia. "Não questiona tanto a necessidade de melhor distribuição de renda. Está longe de carregar aquele neoconservadorismo de certa elite americana", diz.
Um segundo ponto que confirmaria o autêntico interesse das elites latinas por um mundo mais equânime diz respeito a que modelo econômico elas preferem. O exemplo escandinavo, o mais bem acabado de Estado de bem-estar social ("welfare state"), foi o mais citado. Foi escolhido por 30,8%, à frente do modelo da União Europeia (26%) e dos Tigres Asiáticos (14,9%). O padrão altamente liberal americano obteve apenas 5,9% das preferências. Ficou atrás até da Aliança Bolivariana (formada por sete países, entre os quais Venezuela, Bolívia, Cuba e Nicarágua), com 8,1%.
Uma terceira amostra da inclinação das elites a uma maior justiça social tem a ver com o tema prioritário da agenda pública. Questionadas sobre qual o principal objetivo de um governo, as elites dividiram seu maior apoio entre as opções "melhorar os índices educacionais" (Brasil, Chile e Bolívia) e "erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades" (Argentina, Venezuela e México). Assuntos geralmente associados a uma pauta conservadora, de direita, como "garantir a ordem e a segurança pública", "integrar a economia no mercado mundial" e "garantir o crescimento econômico" aparecem em segundo ou terceiro planos.
Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), é um exemplo desse pensamento da elite revelado pela pesquisa. Ele lembra que a conquista da democracia, tanto no Brasil quanto nos demais países da América Latina, não foi acompanhada pela inclusão social. E, como "não conseguimos vencer a pobreza, temos uma dívida social ainda a ser resgatada", diz o empresário. "Não acredito em uma fórmula mágica para chegarmos à plena democracia com igualdade social, mas existem vários ingredientes que nos ajudariam, e muito, a chegar lá", comenta. Entre eles estariam: instituições sólidas e respeitadas, educação e saúde de qualidade acessível a todos, segurança jurídica e capacidade de promover o desenvolvimento sustentado da economia. "O que precisamos é promover a globalização da elite, da riqueza, e não a da fome e a da miséria", afirma Skaf, que foi um dos entrevistados da pesquisa.
Diante de tantos sinais, restaria alguma dúvida sobre o suposto novo pendor democrático e equitativo das elites latino-americanas? Para o professor da Universidade Federal do Paraná Renato Perissinotto, estudioso do tema elites políticas, esses resultados não refletem uma "manifestação cínica". É que prevalece hoje um consenso tão grande sobre o que é a boa sociedade - ou seja, uma democracia liberal associada a um Estado de bem-estar social, combinação idílica dos países escandinavos - que fica muito difícil para qualquer indivíduo, sobretudo para os detentores de funções públicas, assumir posição contrária a pilares desses modelos, como a competição política e as políticas sociais.
Os temas sociais, segundo Perissinotto, são quase inescapáveis. Não daria para deixá-los de lado, seja por razões humanitárias ou por um realismo político praticado pelas elites, que preferem ceder alguns anéis, num ambiente de tranquilidade, a ver algum líder ou movimento radical defendendo cortes e rupturas capitais.
"O ponto a ressaltar é até onde vão, quais são os limites da disposição reformista da elite para resolver os problemas sociais. Porque, a partir de um determinado nível da distribuição de renda, o jogo é claramente de soma zero, ou seja, para um ganhar, o outro tem que perder. E, nesse caso, o ambiente torna-se muito mais competitivo", diz Perissinotto.
O caso da elite boliviana pode ilustrar até onde vai esta disposição. Sentindo-se acuada desde que o presidente Evo Morales assumiu o governo e iniciou profundas alterações - de caráter nacionalista e fortemente voltadas para reivindicações das camadas mais pobres da população - ela demonstra, claramente, seu descontentamento com as políticas sociais em curso. Nesse contexto de inflexão histórica, a sombra de Morales parece estar presente em várias das respostas da pesquisa.
É a elite que mais exige a preservação do regime democrático como principal tarefa de um governo (27,8%). Também é, ao lado da elite venezuelana - que se vê igualmente ameaçada por Hugo Chávez -, a que mais concorda com a frase: "As políticas de distribuição de renda prejudicam os mais competentes" (44,4%). Aqui, há um grande contraste com as elites brasileira e argentina, que são as que mais discordam, total ou parcialmente, da afirmação: 87,7% e 92,8%, respectivamente.
Responsável pela execução da pesquisa na Bolívia, o sociólogo Salvador Romero explica que o baixo apego à democracia no país (apenas 81,1%) vem de dois grupos opostos: por um lado, os setores muito conservadores das elites tradicionais e, por outro, as elites "populares" (líderes de movimentos sociais, sindicais e próximos ao governo) que aderem a uma versão de "democracia autoritária", ou seja, ditada pela maioria, sem respeito à oposição.
Questionados sobre que tipo de presidente resolveria melhor os problemas do seu país, os bolivianos (27%), agora ao lado da elite chilena (26,6%), foram os que menos optaram pela resposta "aquele que toma as decisões ouvindo a população". No Brasil, esse índice foi de 79%, na Argentina, de 63,6%, e no México, 63,3%.
Romero lembra que, em muitos setores da elite, há um profundo temor de que o autoritarismo se instale no país, em virtude de algumas medidas já tomadas pelo governo, como o desmantelamento da maioria das instituições independentes (como o Tribunal Constitucional, a Corte Suprema de Justiça e o Conselho da Judicatura), além das animosidades constantes com os meios de comunicação e declarações agressivas contra a Igreja Católica.
Renato Boschi, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), analisa a situação boliviana sob outro ângulo. Embora não seja adepto do modelo de democracia participativa, que se baseia em consultas à população por meio de plebiscitos e referendos, ele considera que há uma contestação da legimitidade.
Do ponto de vista metodológico, Boschi ressalta que resultados obtidos a partir de respostas de grupos tão diferentes entre si, como ocorre na pesquisa do Nupri, devem ser interpretados com cautela, pois pode haver grande variação entre os países, como visto acima, e, sobretudo, entre os diferentes tipos de elite.
É o caso das respostas dadas a determinados temas pelos distintos segmentos da elite brasileira. Questionadas sobre a redução da interferência do governo na atividade econômica, 59% dos empresários a consideram muito importante, porcentual bem diferente das elites partidária (31%), governamental (24%), da sociedade civil (18%) e sindical (13%).
A divergência entre as opiniões dos líderes empresariais e sindicais é a mais marcante. Enquanto 67% dos membros da elite econômica afirmam que não votariam em políticos acusados por corrupção, 64% dos líderes sindicais responderam que não são influenciados pelas acusações - resultado que pode estar relacionado a uma defesa pragmática do governo Lula, envolvido em 2005 no escândalo do mensalão.
Outro contraste aparece nas respostas sobre que elementos são essenciais à democracia. Entre a elite sindical não há nenhuma menção às opções "aplicação da lei" e "garantir o direito da oposição". Entre os empresários, por outro lado, apenas 2,2% responderam "garantir a participação da população nas decisões do governo". Ou seja, há visões antagônicas sobre como a democracia deve funcionar, claramente influenciadas pelos interesses de classe. De um lado, menos importância ao império da lei e à competição política; do outro, uma desconfiança em relação à participação popular.
Para Marco Marconini, presidente do Conselho de Relações Internacionais da Federação do Comércio de São Paulo (Fecomercio), do mesmo jeito que os sindicalistas têm reclamações em relação aos capitalistas, dizendo que eles só priorizam os lucros, os empresários também criticam as reivindicações políticas dos líderes sindicais.
"O empresário tem, sim, uma certa desconfiança, pois está preocupado com o nível de assistencialismo", afirma Marconini, também um dos entrevistados brasileiros da pesquisa. "O empresário está vendo que isso tem impacto no déficit fiscal, que, por sua vez, afeta os juros e a atividade econômica. Agora, quem não sabe pode achar que não há problema nisso. O ideal é um meio-termo: nem lucros absurdos nem assistencialismo demais, porque fica difícil de viabilizar o país."
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva Santos, rebate a ideia de que programas sociais sejam assistencialistas, ao afirmar que "as elites econômicas é que sempre dependeram e tiveram relações promíscuas com o Estado", por meio de investimentos públicos, subsídios e outras formas de intermediação de interesses. Segundo o líder sindical, é uma incoerência que os empresários critiquem programas como o Bolsa Família, pois eles tiraram 30% das pessoas da miséria absoluta, fortaleceram o mercado interno e teriam favorecido as próprias empresas, que passaram a vender mais. Sobre a pouca importância dada pela elite sindical à aplicação da lei e ao direito da oposição, Santos afirma que, pessoalmente, considera esses elementos essenciais à democracia, mas, por causa do modo como a pergunta foi formulada na pesquisa, teve de priorizar outros aspectos.
Apesar da discrepância nas opiniões das elites econômica e sindical, um ponto as une surpreendentemente (bem como os demais segmentos pesquisados): a descrença no socialismo. Entre a elite da sociedade civil e empresarial, 98% dizem que esse modelo de sociedade não é viável. O porcentual cai entre as elites governamental (89%) e partidária (84%). E, ao contrário das expectativas, também é alto entre os dirigentes sindicais: a maioria, 57%, não acredita no socialismo. O sonho de uma mudança social acabou até para os trabalhadores com mais consciência de classe?
"Hoje a via revolucionária está completamente descartada. O que é o socialismo? A expropriação dos bens de produção e seu controle pelo Estado. Isso mete medo. Nem os sindicatos, que já assimilaram as vantagens da estabilidade econômica, querem. Até por conta da importância que os fundos de pensão adquiriram", afirma Renato Boschi.
O presidente da CUT diz que a maior organização sindical do país continua a defender uma sociedade socialista. Até por ser um ponto que consta no estatuto da entidade. Mas pondera: os modelos é que estão sendo questionados. Não há um pronto, ideal. Nem o modelo soviético - "fechado, centralizador, autoritário", diz - nem o socialismo de mercado da China, tampouco o atual "socialismo do século XXI", capitaneado por Chávez.
"Temos uma situação no mundo, e não só na América Latina, de pleno debate, de mudança de paradigmas, não só dos anteriores à queda do Muro de Berlim como também do neoliberalismo que veio depois. Todos eles caíram, ruíram", afirma Santos. "Agora tudo está em xeque: a distribuição de renda, a sustentabilidade do planeta e a responsabilidade daqueles que implementaram esta sociedade de consumo e levaram ao aquecimento global e à desigualdade.
Quem buscar apenas o caminho da competição e do lucro a qualquer preço vai perder espaço."
A pesquisa sobre as percepções das elites latino-americanas também aferiu quanto o projeto de integração econômica encontra apoio no continente. Brasil e Chile têm as elites menos entusiasmadas. Diante da afirmação "a solução para os problemas sociais do país seria uma integração com os demais países da América Latina", 41,6% dos entrevistados brasileiros e 40,3% dos chilenos discordaram total ou parcialmente da frase.
Curiosamente, a despeito desse ceticismo em relação a uma maior aproximação com os vizinhos, Brasil e Chile são considerados os mais simpáticos, numa lista de 16 países, obtendo, respectivamente, 77,1% e 66,4% de respostas "muito simpático". No outro extremo, foram considerados "nada simpáticos" Estados Unidos (para 45,8%), Venezuela (42,5%), Cuba (31,5%) e Rússia (30,7%).
O perfil ideológico das elites foi aferido numa pergunta que pedia a cada entrevistado que se posicionasse numa escala de 1 (o máximo à esquerda) a 7 (o máximo à direita). Chile (35,8%), Bolívia (34,2%) e Venezuela (25,8%) foram os países onde os representantes das elites mais se declararam de direita (soma das opções 5, 6 e 7). México (18%), Brasil (13,5%) e Argentina (6,1%) revelaram-se os menos direitistas.
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