sexta-feira, 5 de junho de 2009

Uma mudança na agenda da economia

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Não posso imaginar a reação dos mercados no dia em que os títulos do Tesouro dos EUA perderem a condição de "AAA"

AO LONGO dos últimos 60 dias, alguns dos fantasmas que assustavam os mercados voltaram ao nível da fantasia. Os porta-vozes mais expressivos do caos econômico perdem espaço na mídia à medida que a racionalidade volta a prevalecer. Com isso, monstros imaginários passam a ser substituídos por dúvidas e questões reais.

A agenda econômica claramente mudou nas últimas semanas. Afastado o cenário de um colapso no estilo da Grande Depressão, o esforço analítico dos economistas volta-se para a forma da recuperação do crescimento, que ocorrerá a partir de 2010. O ano de 2009 já está perdido na maioria das economias do mundo, e por isso o calendário se inicia no próximo ano.

Estou convencido de que a economia mundial vai estar dividida em dois grandes grupos de países. Fazem parte do primeiro os que terão que passar por um ajuste estrutural de grandes proporções, que condicionará a dinâmica da economia por período longo. O Estados Unidos são seu integrante mais importante, tanto pela dimensão de sua economia como pela dificuldade das mudanças que enfrentará. Mas, de modo geral, quase todo o mundo desenvolvido encontra-se em situação similar.

Outro grupo é formado por economias que sofreram menos com o colapso financeiro iniciado em Wall Street e com o desarme da bolha de consumo gerada pela especulação imobiliária. Não será um grupo homogêneo, pois o principal elemento que os une é o fato de não terem sido afetados pela bolha imobiliária e de crédito. Por exemplo, China, Coreia e outros países da Ásia, na medida em que parcela importante de seu crescimento estava associada ao boom de consumo nos Estados Unidos, vão viver um processo de ajuste diverso do que vai acontecer no Brasil e na Índia. Mesmo com dinâmica heterogênea, esse será o polo mais dinâmico na segunda década do século, gerando um aumento da participação dos emergentes no PIB mundial.

A intensidade da recuperação econômica mundial estará associada de maneira importante ao que vai acontecer nos EUA, que sairão desta crise com cicatrizes profundas. Algumas são superficiais e de cura mais fácil, embora choquem à primeira vista. O melhor exemplo é a General Motors estatal, uma espécie de Automóvel Brás, para usar uma imagem cabocla. Já outras cicatrizes menos superficiais exigirão cuidados médicos mais sofisticados. Como exemplo, eu citaria a tremenda expansão do balanço do Fed, transformado em agente financeiro do Tesouro para evitar o colapso dos grandes bancos americanos.

Mas a cicatriz mais profunda e que maior perigo representa para a recuperação e estabilidade da econômica mundial é o endividamento do governo americano. O órgão responsável pelo Orçamento admite que a relação dívida/PIB pode chegar a 82% em 2019. Nessas condições, o total de juros a serem pagos chegaria a US$ 800 bilhões, ante US$ 170 bilhões em 2009. Esses números certamente afetariam a credibilidade dos títulos do Tesouro, obrigando o governo a trabalhar com a restrição do chamado superávit primário para estabilizar seu endividamento.

Nós, brasileiros, sabemos bem o que é isso, mas na maior economia do mundo será uma novidade. Não por outra razão, nesta última quarta-feira o presidente do Fed fez uma dura advertência ao governo Obama e ao Congresso para que reduzam o déficit fiscal nos próximos anos. Não posso imaginar a reação dos mercados no dia em que os títulos do Tesouro norte-americano perderem sua condição de "triplo A".

Luiz Carlos Mendonça de Barros, 66, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

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