"Este processo revela um dos episódios mais vergonhosos da história
política de nosso país"
Na história judiciária nacional, a começar por sua singularidade, nada
conheço comparável ao mensalão. Destinava-se, ab initio, a aperfeiçoar a
relação entre os poderes Executivo e Legislativo, de modo que não faltasse nem
mesmo falhasse o apoio deste àquele. Para tanto, concebera-se o emprego de um
fator pecuniário, nada mais, nada menos que um estipêndio mensal, estranho ao
subsídio, fora do orçamento, e para tanto logo foi providenciado respeitável
fundo de milhões, para que nunca rareasse o fomento adequado, a seus eventuais
destinatários; com isso, o governo teria assegurado sólido apoio parlamentar.
Embora a inovação não fosse ignorada, em certo momento a excêntrica armação foi
denunciada publicamente, e o caso começou a ser investigado até que o procurador-geral
da República ofereceu minuciosa denúncia, recebida pelo Supremo Tribunal
Federal. Semana passada foi ultimada a fase relativa ao mérito da acusação, foi
o exame do crime de formação de quadrilha. O último a votar foi o ministro
Celso de Mello; esquadrinhou o caso; dele vou servir-me para o artigo de hoje,
que em verdade será mais dele que meu.
Começa por dizer que: "Em mais de 44 anos de atuação na área jurídica,
primeiramente como membro do Ministério Público paulista e, depois, como juiz
do Supremo Tribunal Federal, nunca presenciei caso em que o delito de quadrilha
se apresentasse tão nitidamente caracterizado em todos os seus elementos
constitutivos, como sucede no processo ora em julgamento... Formou-se, na
cúpula do poder, à margem da lei e do Direito e ao arrepio dos bons costumes
administrativos, um estranho e pernicioso sodalício constituído de altos
dirigentes governamentais e partidários, unidos por um perverso e comum
desígnio, por um vínculo associativo estável que buscava conferir operacionalidade,
exequibilidade e eficácia ao objetivo espúrio por eles estabelecido: cometer
crimes, qualquer crime, agindo, nos subterrâneos do poder, como conspiradores à
sombra do Estado, para, em assim procedendo, vulnerar, transgredir e lesionar a
paz pública, que representa, em sua dimensão concreta, enquanto expressão da
tranquilidade da ordem e da segurança geral e coletiva, o bem jurídico posto
sob a égide e a proteção das leis e da autoridade do Estado. A isso, a essa
sociedade de delinquentes, a essa "societas delinquentium", o Direito
Penal brasileiro dá um nome: o de quadrilha ou bando".
Como não posso transcrever outras passagens do notável voto do mais antigo
juiz em exercício do Supremo Tribunal Federal, como seria de meu gosto,
limito-me a reproduzir apenas mais um parágrafo e com ele encerrar a notícia
sem igual deste episódio:
"Este processo revela um dos episódios mais vergonhosos da história
política de nosso país, pois os elementos probatórios que foram produzidos pelo
Ministério Público expõem aos olhos de uma nação estarrecida, perplexa e
envergonhada um grupo de delinquentes que degradou a atividade política,
transformando-a em plataforma de ações criminosas. A acusação criminal contra
esses antigos dirigentes estatais e partidários, cuja atuação se deu no
contexto de um esquema delituoso estruturado nos subterrâneos do poder e que
contou com o auxílio operacional de agentes financeiros e publicitários,
demonstra que a formação de quadrilha constituiu, no caso ora em julgamento, um
poderoso instrumento viabilizador da prática de crimes contra a administração
pública, contra o sistema financeiro nacional, contra a estabilidade do sistema
e contra a paz pública".
Assim foi encerrado o julgamento da ação penal nº 470.
Suponho tenha dito o suficiente para caracterizar, ainda que brevemente, o
espantoso caso.
*Jurista, ministro aposentado do STF
Fonte: Zero Hora (RS)
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