- O Estado de S.Paulo
Primeiro escalão do Executivo não pode ignorar que Estado é Estado e governo é governo
Jair Bolsonaro e os militares que integram o governo civil, eleito pelo povo, estão a uma distância de 55 anos da ditadura em que exerceram o poder em função de um golpe. Eles têm muito a aprender com Anitta. Cansada de pedidos para opinar sobre política, sem nada entender do assunto, a cantora resolveu estudar e simplesmente contratou um professor de história contemporânea.
O primeiro escalão do Executivo não pode mais ignorar que Estado é Estado, governo é governo, justiça é justiça, crime é crime, e despacho de juiz não se discute, se cumpre. Tudo está muito bem definido desde que, com o estado de direito, o Brasil trocou o apelo às rupturas pelas práticas civilizadas de democracia.
Instalados no Palácio do Planalto e em milhares de cargos governo afora, os militares são hoje responsáveis por ações e decisões que afetam a vida das pessoas deste mundo normal. Ações e decisões das quais, aí está a diferença do seu outro tempo, a sociedade, os partidos, as instituições, sentindo-se agredidos e impotentes, podem recorrer à Justiça.
No cerne do agravamento das relações da Presidência com o Supremo Tribunal Federal, elevado ao paroxismo no último fim de semana, está a incompreensão brutal dos limites das atribuições constitucionais dos poderes, das leis, dos regulamentos e até dos dicionários. Esta distorção está na base do alerta e da ameaça implícitos nas notas de demarcação de território, da ativa e da reserva, que publicaram contra decisões judiciais. A animosidade vem de antes quando, em outros governos, tornaram agudas, pela intimidação, tensões políticas em vésperas de votações importantes pelo Supremo. No mandato Bolsonaro, porém, em que ocupam em grande número os postos executivos, as estocadas se multiplicam. O governo é agressivo e conflituoso e a sociedade tende a buscar mais o discernimento da Justiça.
O decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, relator do caso Moro versus Bolsonaro, intimou os ministros do Planalto, pertencentes à corporação militar, a deporem no inquérito e, para convocá-los, deu dois elásticos prazos avisando que, se ainda assim não explicassem a ausência, teriam que comparecer sob vara. Acharam o mero jargão um acinte. O relator encaminhou ao procurador-geral, como manda a formalidade, o pedido de partidos políticos para examinar o celular do presidente da República: outro acinte. Queixam-se até da celeridade que o decano imprimiu ao inquérito, esquecendo-se que é um caso relevante na carreira de um ministro que se aposentará em novembro próximo.
Até agora, na opinião dos que leem nos reflexos do prédio espelhado da Procuradoria Geral, a tendência de Augusto Aras seria determinar o arquivamento do processo. Com base em dois argumentos, correntes entre os defensores: o presidente da República poderia, sim, nomear um diretor da Polícia Federal. O segundo: é quase impossível separar as provas do crime.
No lusco-fusco daquela babel que foi a reunião ministerial de 22 de abril, seria possível ver embaralhados polícia judiciária, informações estratégicas e a segurança pessoal da família do presidente. A questão é que a colheita de provas não se esgotou. Faltam as revelações de Paulo Marinho, o conteúdo do celular de Gustavo Bebianno, o inquérito de fake news, a decisão anunciada de armar o povo como milícias guerrilheiras, e mais a capacidade inesgotável do presidente de se autoincriminar, em moto-contínuo.
Os militares consideram excessiva a judicialização e mais de uma vez reclamaram que o Supremo não deixa o presidente governar. Este é o ponto: Bolsonaro ainda se acha engasgado por decisões do STF, como a que reconheceu aos Estados e municípios a atribuição de decidir sobre o isolamento social na pandemia. Governar já foi “abrir estradas”. Para Bolsonaro, governar é abrir salão de beleza.
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