- O Estado de S.Paulo
Além de recados, cúpula militar tem de manifestar claramente repúdio a golpes e AI-5
Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!
No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.
No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?
O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?
Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas - ambas as funções exigem decoro e compostura.
O episódio - que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” - deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG - ou seja, da imagem das FFAA - para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.
E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?
Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos - e suas famílias - acharam o quê?
O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele me relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, nesta segunda-feira, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.
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