O Estado de S. Paulo
Segundo o ‘Evangelho’, só se pode servir a
um senhor; e o ‘terrivelmente evangélico’ Mendonça tem ao menos quatro.
Em 10 de julho de 2019, o presidente Jair
Bolsonaro disse, em culto evangélico na Câmara dos Deputados, e depois repetiu
no plenário, que indicaria um “terrivelmente evangélico” para vaga no Supremo
Tribunal Federal (STF). “Terrível”, segundo o dicionário Aurélio, vem do latim terribile e quer dizer “que
infunde ou causa terror”. Ou ainda: “muito ruim, péssimo” (página 1.951).
“Evangélico”, segundo a mesma fonte, “relativo ao Evangelho; ou a seus ditames”
(página 854). Esse foi o argumento usado por ele ao indicar o pastor
presbiteriano André Mendonça para a vaga no STF com a aposentadoria do decano
Marco Aurélio Mello, em julho último.
Em momento algum Sua Excelência referiu-se aos ditames da Constituição para a seleção do nome para completar o “pretório excelso”, conforme o artigo 101 da Constituição revisada: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de 11 ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 75 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”. Há dúvidas se o membro escolhido pelo chefe do governo e saudado pela primeira-dama em língua indecifrável por humanos, por mais poliglotas que sejam, abrigue em seu currículo esses predicados. De sua obra jurídica, a mais notória é a coordenação de um livro em homenagem aos dez anos de presença de Dias Toffoli na casa em que será acolhido. Não se pode dizer que seja justo, mas grato, certamente, o é o funcionário com carreira apadrinhada na Advocacia-Geral da União (AGU) pelo ex-chefe.
Em 30 de outubro de 2002, quando exercia a
função na repartição no norte do Paraná, o pastor tido como jurista assinou
na Folha de Londrina artigo
intitulado O Povo Se Dá uma Oportunidade sobre
a vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência da
República. Pontificou: “Temos o primeiro presidente eleito do povo e pelo
povo”. Rasurou a História. O pernambucano Aristides Inácio da Silva, pai de
Lula, foi ensacador no Porto de Santos, e estivadores não ganham salário
mínimo. Em setembro passado, um desses trabalhadores nesse porto ganhava, em
média R$ 7.501 mensais, o triplo do que o governo do Estado de Minas Gerais
paga, em média, a professoras, ofício de Júlia Kubitschek de Oliveira, mãe do
telegrafista, médico, prefeito de Belo Horizonte, governador de Minas Gerais e
presidente da República Juscelino. Quando Mendonça entrou no serviço público, o
idolatrado em seu artigo tinha deixado de ser operário (qualificado) da
Villares para assumir um posto de direção no Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo e Diadema, hoje do ABC, com uma jornada de trabalho muito
menor e um salário superior ao de um operário privilegiado de montadora de
automóveis.
A militância impressa e assinada leva o
observador mais atento a lembrar algo mais comprometedor na biografia do novo
ocupante da cúpula do Poder Judiciário nacional. Indicado pelo patrono da vida
inteira, Dias Toffoli, advogadinho do PT desde o estágio, Mendonça foi feito
chefe da AGU por Michel Temer, a pedido de Jair Bolsonaro, que tinha acabado de
derrotar o candidato-poste do partido de Toffoli & Mendonça. Desde então,
passou a desafiar um preceito do Evangelho.
“Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro
ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Mateus, 6:24). Mamom, nos estudos
bíblicos, define não apenas dinheiro, como registram as traduções mais
conhecidas, mas também tudo o que diga respeito a patrimônio de bens materiais.
Restará ao reverendo a desculpa de que ele não ofende o preceito de Nosso
Senhor, de não ter dois senhores, por servir a, pelo menos, o que é público e
notório, quatro: Toffoli, patrono de suas promoções na casta burocrática; Lula,
líder de ambos, agora em nova disputa pela Presidência; Bolsonaro, que com este
disputará a própria permanência no cargo; e Gilmar Mendes.
Comemorado pelo pranto festivo de Michelle
Bolsonaro, André Mendonça herdará, ao assumir o gabinete do primo de Fernando
Collor, várias causas que cuidam de interesses da famiglia presidencial. Uma
delas repousa no berço esplêndido da dúvida da origem de R$ 89 mil depositados
na conta de madame por Fabrício Queiroz, subtenente da PM fluminense e suspeito
de ser pau-mandado de milicianos.
Deus é testemunha de que o indicado
anterior pelo capitão na Presidência, Kássio Nunes Marques, tem negado
sistematicamente o brocardo segundo o qual ministros do STF se dispensam de
fidelidade a padrinhos ao longo do exercício. Porque não mais podem ser
alcançados pelo alfanje da demissão. Talvez nem a infinita sabedoria divina
será capaz de profetizar que ginástica absurda o fâmulo de Mamom terá de
praticar para servir aos senhores que dele esperam, no mínimo, gratidão eterna
enquanto dure.
Por enquanto, tudo indica que os quatro
desejam a derrota de Sérgio Moro no primeiro turno. Mas em outubro de 2022, se
Bolsonaro realizar o sonho de disputar o segundo com Lula e vice-versa, a que
causa se dedicará o servidor de Mamom?
*Jornalista, poeta e escritor
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