Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Os diferentes grupos organizados de
referência na reprodução da intolerância com o outro, política ou religiosa,
desenvolveram uma sociabilidade autoimune
O curto regime bolsonarista fez e continua
fazendo muitas revelações do que é o Brasil político. Mostrou-nos que o que
imaginávamos ser o país utopicamente democrático da Constituição de 1988 é, na
verdade, um país de democracia híbrida infiltrada por estruturas autoritárias e
por uma cultura acentuadamente intolerante.
O descuido pós-ditatorial, dos que lutaram
pela democracia contra a ditadura de 1964, em relação a essa infiltração,
permitiu que o autoritarismo crescesse e se multiplicasse nutrido pelos
direitos do regime democrático. E criasse as bases sociais do que Theodor
Adorno, em famoso estudo por ele coordenado nos EUA, chamou de personalidade
autoritária. Bolsonaro a expressa e aglutina os dela dotados.
A mudança de governo não mudará essa realidade, a menos que leve em conta que é preciso identificar e neutralizar os focos dessa vulnerabilidade.
Os indícios já conhecidos das preocupações
do novo governo, que assumirá na primeira hora de 2023, sugerem uma reiteração
dos temas sociais e econômicos do período dos anos do petismo no poder. Os
produtores de conhecimento crítico sobre a realidade social e histórica e das
condições de superação de suas contradições não nos legaram os instrumentos
para compreender e vencer o autoritarismo.
Aparentemente, estamos desatualizados em
relação ao possível e necessário nesta hora escura de incertezas e
fragilidades.
Ainda não conseguimos repensar a democracia
deste novo momento, sua arquitetura, seus alicerces sociais e políticos.
Estamos pensando em transição de maneira abstrata e, de certo modo, messiânica,
fortemente dependente do carisma de uma só pessoa. Democracia, na verdade, é um
empreendimento social e comunitário no campo da política e não apenas no dos
políticos.
A lentidão e a demora na releitura de um
projeto democrático para o Brasil faz com que, de vários modos, Bolsonaro e os
militares que o cercam adulam e usam saiam politicamente vitoriosos, apesar de
derrotados nas urnas. Eles conseguiram dar visibilidade política e ideológica
ao crônico autoritarismo brasileiro, conseguiram dar-lhe um nome e uma
identidade antidemocrática - direita - como disse o próprio Bolsonaro no curto e
contrariado discurso em que reconheceu que perdera.
Tudo indica, no entanto, que os que ele
representa não foram derrotados. Com essa identidade, eles conseguiram
disseminar-se pelo país inteiro, por todas as classes sociais, até mesmo entre
os pobres, pelas igrejas fundamentalistas ideologicamente aprisionadas no
interior das muralhas indevassáveis da falsa consciência, com grande força de
reprodução ampliada e de crescimento. Elas se tornaram a fábrica principal da
alienação que veta e inibe no cotidiano a consciência crítica essencial à
democracia. O autoritarismo bolsonarista, agora enraizado, e seus beneficiários
dependem desse mecanismo de gestação e reprodução da consciência
antidemocrática.
As oposições ao autoritarismo organizado só
tardiamente se agruparam em torno de Lula, simplesmente porque as pesquisas de
opinião apontavam que ele era o único candidato potencial que poderia vencer
Bolsonaro. Uma pessoa e não um programa de governo, que só agora está sendo
montado. Nem é, ainda, um projeto democrático de nação.
A estrutura organizada de um governo
democrático e pluralista poderá não ser suficiente para vencer ou ao menos
neutralizar a força autorreprodutiva da intolerância e do preconceito, valores
de orientação e fundamentos da situação política antidemocrática que, apesar
dos resultados da eleição, continuarão ativos.
Os diferentes grupos organizados de
referência na reprodução da intolerância com o outro, política ou religiosa, e
reprodução ampliada da direita, desenvolveram uma sociabilidade autoimune, que
aprisiona as pessoas em formas fechadas de vida social e de compartilhamento de
ideias socialmente redutivas. As que podem ser definidas como próprias do que
Goffman define como instituições totais. Nesse sentido, marcadas pela difusão
de uma cultura autoritária no subterrâneo da democracia. Pela ressocialização
de seus membros é ela formadora de personalidades autoritárias. Isto é,
potencialmente ou mesmo ativamente fascistas.
Isso se tornou notório no governo que
acaba. Bolsonaro deu a esses grupos não só um nome, na definição como direita,
mas uma identidade baseada na usurpação de símbolos da unidade nacional,
fornecendo-lhes até mesmo uma motivação religiosa, como “Deus, pátria e
família” e “Deus acima de todos, Brasil acima de tudo”. Concepções totalizantes
e totalitárias, nesse sentido, ele não protagoniza uma ideologia, mas uma
crença. Ele transformou o fascismo numa religião.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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