O Globo
A âncora proposta meia década atrás
sucumbiu
O teto de gastos é uma ficção fiscal
comparável à cloroquina no enfrentamento à Covid-19. Instituído em 2017, não
atravessou um solitário ano sem gotejar. Nas contas da economista Vilma da
Conceição Pinto, diretora na Instituição Fiscal Independente (IFI), já no
biênio inicial, ainda no governo de Michel Temer, foi arrombado em R$ 45,7
bilhões. Na dobradinha Jair Bolsonaro-Paulo Guedes, desmoronou. Em 2019, foram
R$ 77 bi fora da regra estabelecida pela Emenda Constitucional 95/2016. No ano
seguinte, o primeiro da pandemia, meio trilhão de reais (R$ 538 bi); em 2021,
R$ 146,6 bi. Neste 2022, até setembro, as despesas extras alcançaram R$ 95,9
bilhões.
É espantoso que, diante de tamanha
desmoralização, o mercado e boa parte da opinião pública ainda entrem em modo histeria
quando o Orçamento, igualmente fictício, apresentado pelo presidente derrotado
não comporta o teto. A âncora fiscal proposta meia década atrás sucumbiu tal
qual a do navio São Luiz, que, negligenciado pela Marinha, ficou à deriva e foi
dar num dos pilares da Ponte Rio-Niterói.
— O teto é disfuncional. Desde 2019, tem
sido submetido a excepcionalidades — diz Vilma.
Em nome de um mecanismo fracassado de controle das contas públicas, o mercado, o país e o futuro governo desperdiçam a oportunidade de travar um debate de alto nível sobre como conjugar responsabilidade social com previsibilidade fiscal. O presidente eleito dá sinais de que não se renderá à queda de braço imposta pelos agentes financeiros, expressa em queda na Bolsa e disparada do dólar.
Do lado de Lula, o recado está dado. A conta de chegada é melhorar o valor — e qualidade, por favor — da política social de transferência de renda, esfacelada na gestão Bolsonaro; retomar o modelo de ganho real do salário mínimo; recompor investimentos no meio ambiente e em universidades públicas; devolver o que foi retirado da merenda escolar e da Farmácia Popular.
A missão dos economistas da transição, em
diálogo com o Legislativo, é fazer a conta fechar. E não há incompatibilidade
entre honrar passivos sociais e oferecer transparência, eficiência e
previsibilidade nos gastos públicos. Lula é, com razão, inimigo do teto de
gastos, não do equilíbrio fiscal. Tanto que não para de lembrar os superávits que
entregou, sobretudo no primeiro mandato.
Não por acaso, o vice-presidente eleito
disse alto e bom som anteontem que “o governo não será gastador”, mas é preciso
garantir a rede de proteção social. Geraldo
Alckmin se contrapôs, sutilmente, a uma gestão que conseguiu a
proeza de ser gastadora sem produzir bem-estar. Jair Bolsonaro fez escolhas
oportunistas e caras para comprar a reeleição. Em um ano, 2020, gastou uma
década de Bolsa Família para reduzir a pobreza durante um punhado de meses.
Subtraiu arrecadação de ICMS dos estados para subsidiar a gasolina da classe
média. Violou boas práticas nas áreas fiscal, social e climática. Conquistou a
tríplice coroa da irresponsabilidade.
Há gente interessada em apresentar ao país
um novo regime fiscal, que leve ao equilíbrio das contas e não comprometa
programas sociais. Por isso, a primeira versão da PEC da Transição, que deixa
R$ 198 bilhões fora do teto, não agradou.
—Importa menos a reação exagerada dos
mercados. O ponto é que foi mal feito o processo. Ficou tudo na articulação
política, esqueceram as contribuições técnicas. A oportunidade de substituir o
teto moribundo por uma nova âncora fiscal é agora —diz a economista Monica De
Bolle, professora na Universidade Johns Hopkins (EUA).
O teto de gastos é ruim, porque políticas
de saúde, educação e assistência num território com os níveis de desigualdade
do Brasil não podem ser balizadas por índice de inflação. José Serra, senador e
ex-ministro, Felipe Salto, secretário de Fazenda de São Paulo, e até a
Secretaria do Tesouro lançaram propostas que convergem para uma trajetória
decrescente da dívida pública.
Mas, como diversidade é ativo escasso no
debate econômico, trago a proposta de emenda à Constituição elaborada por um
grupo de mulheres especialistas em finanças públicas. Elas No Orçamento foi um
movimento gestado um mês e meio atrás, às vésperas do segundo turno, para
provar que há quadros femininos de excelência para liderar equipes econômicas
em todos os níveis de governo. A lista já passa de 300 nomes — e contando.
Nesta semana, algumas delas — Clara Marinho
e Roseli Faria, ambas analistas de planejamento e orçamento do Executivo, Julia
Rodrigues, consultora de orçamento na Câmara, Monica De Bolle, Rita Santos,
consultora de orçamento no Senado, e Virginia De Angelis, auditora de controle
externo no TCU — propuseram uma PEC para instituir o Regime Fiscal Sustentável,
em linha com princípios de governança orçamentária recomendados por OCDE, FMI e
Banco Mundial.
— Nenhuma dessas organizações preconiza
teto de gastos anualizado, mas um quadro de convergência de despesas e receitas
a médio prazo. O teto brasileiro não promove gestão pública responsável,
consistente e sustentável — explica Rita Santos.
A proposta combina meta de endividamento
público de médio prazo; estratégia de desenvolvimento de longo prazo, com
diretrizes, prioridades e metas econômicas e sociais; quadro de entregas
prioritárias; quadro de despesas compatível com a trajetória da dívida; revisão
de gastos para abrir espaço fiscal para programas prioritários. Ser fiscalmente
responsável e priorizar os mais pobres implica confrontar subsídios,
desonerações e o sistema tributário essencialmente injusto. Sem falar que
política de transferência de renda bem calibrada leva a aumento de consumo, e
bons investimentos em saúde e educação estimulam emprego e renda, sobretudo
para mulheres. Relacionam-se, portanto, a crescimento econômico, melhora no
mercado de trabalho, aumento de arrecadação.
Lula e Alckmin, falem (também) com Elas.
2 comentários:
Excelente coluna! Parabéns à autora e ao blog que a divulga!
A Jornalista FLÁVIA OLIVEIRA está para o Teto de Gastos assim como a Infectologista LUANA ARAÚJO, convidada a depor pela CPI da Covid, está para o Tratamento Precoce com Cloroquina: CORRETAMENTE CONTRA!
E sem essa de dobrar a espinha para o mercadinho da especulação, como os 'talkinglittleheads' a soldo que pululam, vivandeiras que são, em torno da banca.
Está certa e com razão, e explica claramente os porquês.
Parabéns a ela, merecidos.
Postar um comentário