Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Mudar o quadro atual será um processo lento
e com várias frentes, necessitando da ajuda de todos os democratas
O bolsonarismo foi derrotado em seu projeto
de reeleição, mas não nos abandonou por completo ainda. O fato é que o ex-presidente
Bolsonaro acumulou várias derrotas desde outubro do ano passado - e
provavelmente terá várias outras na Justiça e na política nos próximos meses -,
só que deixou alguns legados que estão afetando negativamente o sistema
democrático brasileiro. Há armadilhas que precisam ser desarmadas para que em
2026 não haja mais a preocupação com um golpe de Estado ou com a criação de um
cenário de ingovernabilidade.
À primeira vista, o plano autocrático de
Bolsonaro fracassou e as tentativas de insurreição autoritária estão piorando
as condições jurídicas e políticas das lideranças bolsonaristas. A proposta de
usar o artigo 142 da Constituição para dar um golpe de Estado, transferindo o
poder às Forças Armadas, feita formalmente no dia 28 de dezembro, foi rejeitada
pela cúpula militar. Como fato ou como lenda, ficou para a história a frase do
comandante do Exército: “Não vou trocar 20 dias de glória por 20 anos de
incômodo”.
A rejeição ao golpe não acabou com as movimentações autoritárias e golpistas, inclusive por parte de integrantes das Forças Armadas. A intentona de 8 de janeiro prova cabalmente que havia articulações, insufladas e comandadas por lideranças bolsonaristas, para tentar inviabilizar o mandato do presidente Lula. Na verdade, mais do que derrubar o governo, o propósito era destruir a ordem democrática do país, pois os terroristas invadiram os palácios que sediam os três Poderes para estabelecer uma autocracia que levaria de roldão petistas, Centrão, PSDB, União Brasil, o STF e todos aqueles que fossem democratas.
Cabe aqui um parêntese mais alongado:
sabe-se que as pessoas presentes nesse dia da infâmia da República brasileira
podem ser divididas entre organizadores de primeira ordem do golpismo e pessoas
que serviram como massa de manobra, cujo passe foi comprado com transporte,
alimentação e discurso de ódio às instituições. O uso do termo terrorista pode
ser questionado olhando a letra fria da lei brasileira. Porém, se sua concepção
mais ampla envolve a ideia de usar a violência planejada para desestruturar a
ordem pública por meio do terror e medo que causa na sociedade, havia então
muitos terroristas no Capitólio à brasileira.
É importante ressaltar que não dá para
separar o caso da bomba, cuja explosão foi evitada dias antes, da ação violenta
realizada na Praça dos Três Poderes, não só porque os dois atos estavam
interligados ao movimento mais geral, mas sobretudo porque a violência
premeditada era a tônica de ambas as ações. As investigações estão mostrando
que havia ali muita gente treinada para atuar e reagir violentamente contra as
forças policiais, e que fizeram esse ato com apoio de integrantes do Estado
brasileiro, num conluio planejado que incluía a definição de rotas e o
conhecimento de onde estava o que deveria ser destruído.
Quem acompanhou nas últimas semanas os
grupos de Telegram bolsonaristas constata que o objetivo da intentona era gerar
um efeito simbólico de larga escala para desestruturar a ordem pública, bem na
linha das performances que muitos terroristas utilizaram ao longo da história.
O terror não estava planejado contra um grupo social, mas era destinado a
atingir as instituições democráticas, derrubando suas lideranças e levando a
população a aceitar a instauração do autoritarismo por temor de novos atos de
violência. Quem organiza e realiza isso, portanto, só pode ser terrorista, de
um tipo que está sendo cada vez mais usado pela nova extrema direita mundial.
Para o bem do país e de suas instituições
democráticas, o efeito do terror causado em Brasília foi o inverso do planejado
pelos bolsonaristas. Os golpistas foram em sua maioria presos. A linha
performática da extrema direita produziu inúmeras provas contra os
participantes da intentona. Está sendo possível, ademais, ir atrás de parte dos
financiadores. As lideranças do poder público que foram omissas ou algo mais
também têm sido alvo da reação democrática, inclusive com a retirada do cargo,
por três meses, do governador do Distrito Federal.
Os instigadores e organizadores do golpismo
começam a ser identificados, num processo que será mais lento porque atingirá o
coração dessa organização criminosa contra a democracia. A descoberta do
decreto do golpe na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que é a
cereja do bolo de diversos fatos amplamente documentados nos últimos quatro
anos, vai levar esse processo ao líder máximo, o ex-presidente Bolsonaro. Sua
condenação por chefiar o terrorismo contra o estado democrático ainda é uma
questão em aberto, mas é quase certo que se tornará inelegível, reduzindo
drasticamente a força do bolsonarismo.
O resultado político imediato da intentona
fracassada foi o reforço da autonomia das instituições democráticas e da
cooperação entre elas, sejam os três poderes da República, seja a federação.
Lula ganhou um fôlego político maior do que o dado pela ideia de frente ampla.
Além disso, uma parte do eleitorado que votou em Bolsonaro em 2022 tem boas
chances de, paulatinamente, abandonar o discurso da extrema direita
representado pelos bolsonaristas. Tudo isso levaria a um fortalecimento da democracia,
e não ao seu enfraquecimento. No entanto, quatro anos de ação bolsonarista, com
grande organização social e forte atuação no aparelho do Estado, deixaram ao
país três legados negativos que afetam o sistema democrático brasileiro.
O primeiro é que ainda há um conjunto
importante de lideranças políticas que tiveram, em maior ou menor medida,
relação com o bolsonarismo. De fato, uma parte mais radical pode se isolar
politicamente. Só que esse grupo tem conseguido mobilizar uma parcela
minoritária, mas barulhenta e mobilizada da sociedade. Por meio de um arsenal
contínuo de fake news espalhadas pelas redes sociais, esses políticos minam a
democracia. É preciso atuar para estancar suas formas de comunicação, muitas
delas financiadas e estruturadas de forma ilícita.
Além dos bolsonaristas-raiz, outros líderes
foram eleitos com o apoio decisivo de Bolsonaro ou o apoiaram no segundo turno.
Eles ocupam posições centrais no sistema político brasileiro e sua
responsabilidade democrática vai ser testada daqui para diante. Se Arthur Lira,
por exemplo, tem sido capaz de defender a democracia e se afastar do
radicalismo autoritário, Romeu Zema deu uma entrevista desastrosa, dizendo que
o governo Lula se fez de vítima durante a intentona para ganhar poder político.
Ora, o que está em jogo são as instituições democráticas, e não o governo de
plantão. O governador mineiro tem que se definir de que lado está em relação à
defesa da democracia, porque manifestantes que advogam a quebra das regras do
jogo têm outro nome.
O segundo legado negativo do bolsonarismo é
a politização das Forças Armadas e de instituições policiais. Os estudiosos da
questão militar têm dito, faz muitos anos, que as Forças Armadas não tinham se
adaptado completamente ao regime democrático após o fim da ditadura. Houve
vários episódios, principalmente na última década, de insubordinação militar
frente às instituições democráticas. Só que Bolsonaro piorou muito essa
situação, construindo, em parceria com colegas da caserna, uma proposta
autocrática de colonização do Estado pelos militares, envolvendo a distribuição
de poder e de benesses materiais.
Usando um termo empregado originalmente por
Golbery, Bolsonaro criou um monstro dentro das Forças Armadas, incutindo nela
tanto a anarquia organizacional como a sensação de um projeto de poder próprio,
algo que tinha se perdido desde o fim da ditadura. É bem verdade que os
comandantes militares calcularam o custo de um golpe e não embarcaram nessa
aventura, que não só teria destruído a democracia, como teria levado o país a
um isolamento internacional inédito - com prováveis sanções e até intervenção -
e a uma enorme crise econômica. Evitou-se aquilo que se transformaria nas
Malvinas brasileiras, mas o fato é que os chefes militares não conseguem hoje
controlar por completo sua corporação e a chamada “família militar”, dado o
peso da reserva na visão de mundo desse grupo.
A despolitização das Forças Armadas, que
significa hoje sua desbolsonarização, é uma tarefa que não deveria ficar apenas
a cargo do governo Lula. Essa é uma tarefa de toda a sociedade comprometida com
a democracia, de todos os partidos políticos e do Judiciário. As Forças Armadas
formam excelentes quadros que prestam serviços essenciais à nação, todavia
devem, como instituição, ficar restritas ao seu já relevante papel. Sair dele
ao longo da história significou, quase sempre, autoritarismo, e agora
significaria a perda de poder geopolítico e econômico do Brasil.
O legado mais profundo do bolsonarismo, por
fim, foi espalhar uma visão antidemocrática para várias parcelas da sociedade
brasileira, em graus diversos, mas em todos eles por meio de uma concepção de
mundo que vai muito além do antipetismo, gerando uma rejeição ampla e difusa em
relação à legitimidade das instituições. Mudar esse quadro será um processo
lento e com várias frentes, necessitando da ajuda de todos os democratas, para
que não haja uma nova intentona golpista e terrorista na história do Brasil.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
2 comentários:
Pois é,disse tudo.
Triste é perceber que as Forças Armadas sempre se comportaram como o guarda-chuva de todas as conspirações antidemocrática ocorridas em nosso país.
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