CartaCapital
O bolsonarismo e seus satélites ganham tração nos municípios
Findo o primeiro turno das eleições municipais
de 2024, muito se falou sobre o crescimento da direita no Brasil,
prenunciando a eleição de um Congresso ainda mais conservador em 2026, pois o
melhor preditor da eleição congressual são as disputas municipais que a
antecedem. Esclareçamos, porém, de qual direita se fala. Podemos falar de ao
menos três no atinente ao sistema partidário.
Uma é aquela direita tradicional, formada pelos partidos que correspondem ao conjunto conhecido como “Centrão”. Trata-se de uma direita pragmática, mais do que ideológica, que historicamente hipotecou apoio aos governos em troca de dois benefícios materiais: cargos na administração pública direta ou indireta e recursos do orçamento público. Tal modus operandi de trocar apoio por cargos e verbas, conhecido como fisiologismo, é o que me faz denominar tais agremiações como partidos de adesão. Aderem a quaisquer governos, desde que recompensados.
Devido ao cada vez maior controle do
orçamento público pelo Congresso, retirando do Executivo a possibilidade de
barganhar a liberação de recursos como contrapartida à lealdade parlamentar, o modus
operandi dessas agremiações mudou. Nos últimos anos, elas puderam hipotecar
cada vez menos apoio ao governo, pois dependem menos dele. Ou seja, os partidos
de adesão já não são tão aderentes. Ainda que o Executivo ceda espaços na
máquina aos partidos, seja na chefia de ministérios, seja em postos na
burocracia pública, tem menor capacidade para manter a lealdade dos
congressistas individualmente. Isso lhes permite, sem deixarem de ser
pragmáticos, se tornarem mais ideológicos.
Uma segunda direita (ou centro-direita) é
formada por partidos que não atuam (ou atuaram) como de adesão. É o caso do
PSDB, do PFL/DEM e do PPS/Cidadania. Essas agremiações sustentaram o governo de
Fernando Henrique Cardoso e se mantiveram firmes na oposição às gestões
petistas. O PPS, a bem da verdade, chegou inicialmente a integrar a coalizão
de Lula, mas durou pouco. Foram partidos mais vertebrados ideologicamente e
menos pragmáticos na barganha de apoio por recursos governamentais. Por isso
mesmo sofreram na oposição.
Finalmente, há uma terceira direita, mais
nova e ideológica, a extrema-direita. Embora sempre tenha tido representantes
esparsos por diversas agremiações, não era dotada de maior coesão até o advento
do bolsonarismo. Chegou ao poder como movimento, não como partido,
circunstancialmente abrigada no PSL que elegeu Jair Bolsonaro, além de contar
com os esparsos de sempre. O bolsonarismo no governo abriu campo para o seu
avanço e consolidação. Incapaz de criar um grande partido no qual pudesse se
organizar, acabou por ingressar massivamente no antes adesista PL de Valdemar
Costa Neto, transformando-o em seu principal, mas não único, instrumento de
ação eleitoral. O Novo é um satélite nanico desse extremismo direitista
hegemonizado pelo bolsonarismo.
Feito o mapeamento, podemos avaliar como os
partidos se saíram no primeiro turno destas eleições municipais. A direita
pragmática correspondente dos partidos de adesão sempre foi predominante nas
disputas locais. Essas agremiações conquistaram, em média, 68% dos municípios,
considerando-se todos os certames municipais desde 1982 (excetuados os de 1985,
quando só capitais e algumas outras cidades elegeram prefeitos, totalizando 201
disputas). Nas eleições deste ano foram conquistados 71% dos municípios em disputa
no primeiro turno – isto é, um montante muito próximo da média histórica.
Os partidos do dito “Centrão” tiveram um
desempenho próximo da sua média histórica
A direita e o centro-direita ideológico
moderado, por sua vez, conquistaram, em média, 19% dos municípios nos pleitos
municipais, atingindo o ápice em 2000, últimas eleições locais do período FHC,
quando abiscoitou 39% das vitórias. No primeiro turno de 2024 obteve magérrimos
6%, já desfalcada do PFL/DEM, que se juntou ao PSL ex-bolsonarista para formar
um novo partido de adesão, o União Brasil.
A novidade deste ano é a extrema-direita
municipalista, que conquistou 10% das prefeituras no primeiro turno (e poderá
aumentar sua fatia no segundo) com as vitórias do PL e do Novo. Como antes não
havia uma extrema-direita centralizada partidariamente nessas duas
agremiações, não há como considerar tal crescimento em perspectiva histórica.
Pode-se afirmar, contudo, que essa fatia de municípios conquistada pela
extrema-direita não é reflexo local de disputas nacionais, mas resultado da
estruturação desse segmento no plano municipal. Isto é, a extrema-direita
ganhou nos municípios porque está implantada neles.
E a esquerda? Essa tem sofrido muito desde
2016, quando seu principal partido, o PT, sofreu uma debacle, perdendo 60% de
seus prefeitos e vereadores – naquelas eleições, a esquerda como um todo ganhou
21% das prefeituras. O melhor momento da esquerda municipalista foi em 2012,
quando cacifou 28% dos governos locais. Após o trágico ano do impeachment de
Dilma Rousseff, da recessão causada pela política econômica de seu governo e do
apogeu da Operação Lava Jato, a esquerda não se recuperou do baque. Em 2020 teve
resultados ainda piores do que quatro anos antes, amealhando apenas 15% dos
governos locais. E, finalmente, em 2024, ganhou apenas 14% das disputas
travadas no primeiro turno.
Enfim, a novidade de 2024 não é um suposto crescimento dos partidos do “Centrão” nos municípios. Isso não ocorreu, pois essas agremiações ficaram pouco acima da média histórica. Um aspecto a ser ressaltado é o desmilinguir do centro-direita representado pela Federação PSDB Cidadania. Comparada ao resultado de quatro anos atrás, ela foi reduzida à metade: de 12% para 6% das municipalidades. Se considerarmos o DEM ainda parte desse grupo em 2020, o tombo foi ainda maior: de 21% para 6%. Mas talvez seja mais acurado dizer que naquele momento o antigo PFL já havia virado “Centrão”. Portanto, de singular mesmo sobra uma coisa: o surgimento de uma extrema-direita partidária implantada nos municípios. Ela cresceu no espaço aberto pelo declínio do centro-direita e da esquerda.
Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital,
em 16 de outubro de 2024.
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