Correio Braziliense
O excesso de poder judicial
tende a se intensificar e alimentar a insatisfação de setores do Congresso que
veem no STF não apenas um árbitro, mas um protagonista político
A decisão monocrática de Gilmar Mendes, que
restringe à Procuradoria-Geral da República a legitimidade para apresentar
denúncias por crimes de responsabilidade contra ministros do Supremo Tribunal
Federal, não é um episódio isolado. Ela se inscreve numa longa trajetória de
expansão da autoridade judicial sobre o sistema político. Esse fenômeno foi
analisado pelo falecido sociólogo Luiz Werneck Vianna, que identificou, desde
os anos 1990, a formação de um novo canal de organização política da sociedade
no qual o Direito não apenas regula conflitos, mas ocupa, historicamente,
funções que em outros países caberiam aos partidos, ao parlamento e à sociedade
civil organizada.
Em Corpo e alma da magistratura brasileira (1997) e A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (1999), Werneck demonstrou que a Constituição de 1988 ampliou competências do Judiciário, criou direitos e estabeleceu mecanismos de controle que transferiram para as cortes superiores uma porção crescente da vida pública. O STF deixou de ser um intérprete final da Constituição para se tornar um ator político estruturante, responsável por arbitrar desde políticas públicas até conflitos federativos, temas morais e impasses institucionais.
A decisão de Gilmar Mendes de ontem reforça
essa tendência, que se aprofundou nas últimas décadas: o Judiciário decide
sobre os limites de sua própria responsabilização e condiciona o funcionamento
dos demais Poderes. O ministro atendeu ao pedido do procurador-geral da
República (PGR), Paulo Gonet, para quem a abertura indiscriminada de pedidos de
impeachment contra ministros poderia se transformar em mecanismo de
intimidação, gerar insegurança jurídica e constranger a independência dos
juízes. Ou seja, monopolizou os pedidos.
Sim, há uma preocupação real com a crescente
hostilidade dirigida ao STF por grupos organizados, em especial após 2013, a
Lava Jato e os episódios golpistas de 2022, que agora reverbera no Congresso. É
anabolizada por deputados e senadores de oposição. Do ponto de vista institucional,
porém, se a decisão reafirma a autoridade do Supremo como guardião da ordem
constitucional, por outro lado, reinterpreta normas existentes e restringe
mecanismos de accountability. A expressão em inglês, conceitualmente, vai além
da responsabilidade, abrange a obrigação de prestar contas, agir com
transparência e ser corresponsável por resultados.
É por isso que a reação do Congresso foi
imediata. Seu presidente, senador Davi Alcolumbre (União-AP), classificou a
decisão como tentativa de “usurpar prerrogativas do Legislativo”, em colisão
com o princípio da separação dos poderes. Senadores como Eduardo Braga
(MDB-AM), aliado do governo, e Rogério Marinho (PL-RJ), líder de oposição,
ampliaram as críticas e alertaram para o risco de crise institucional. A lei
que permitia aos cidadãos e parlamentares denunciarem ministros é de 1950; por
isso, a nova interpretação provocou o incômodo do Parlamento diante da
reconfiguração do equilíbrio entre os Poderes, com decisões judiciais que se
sobrepõem ao processo legislativo.
Duas éticas
Werneck Vianna antecipou esse tipo de
conflito ao analisar a “despolitização da política”: o esvaziamento das
instâncias tradicionais de deliberação e a migração contínua de demandas
sociais para o campo judicial. Quanto mais frágil o sistema partidário e mais
incapaz o Legislativo de formular consensos duráveis, maior o espaço aberto
para o Judiciário assumir funções decisórias. Essa sobrecarga funcional gera,
inevitavelmente, tensões. O que vemos agora é o Legislativo tentando recuperar
um território que, na prática, cedeu ao Judiciário ao longo de mais de três
décadas, por omissão em relação à legislação complementar à Constituição de
1988.
O caso atual envolve o próprio STF. Ao exigir
que apenas o procurador-geral da República possa denunciar ministros e ao
elevar para dois terços o quórum de abertura de processo, a Corte endurece as
barreiras contra iniciativas politicamente motivadas — mas também reforça a
percepção de que age em defesa de si mesma. A legitimidade do Judiciário
repousa, em boa medida, na sua capacidade de preservar o caráter republicano de
suas decisões. Quando juízes parecem reinterpretar a lei para autoproteção,
acabam por tensionar sua própria autoridade democrática. É o que estamos vendo.
Na verdade, esse processo é ambivalente: a
judicialização tem aspectos positivos, como a defesa de direitos e o controle
de abusos, porém, produz assimetrias políticas que podem fragilizar a
representação popular. No contexto de muitas decisões polêmicas, como a de impor
sigilo absoluto ao caso do Banco Master, o que já era visto como excesso de
poder judicial tende a se intensificar e alimentar a insatisfação de setores do
Congresso que veem no STF não apenas um árbitro, mas um protagonista político,
capaz de redefinir as regras do jogo político sem negociação
interinstitucional.
Polarização, impeachments, prisões de
ex-presidentes e mobilizações antidemocráticas, a tensão entre os poderes é um
caldeirão efervescente. Desnuda o conflito permanente entre as dimensões republicana
(regras, controles, impessoalidade) e democrática (participação, representação)
na política brasileira, entre a ética da responsabilidade e a ética das
convicções, fricção permanente da democracia.

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