DEU NO VALOR ECONÔMICO
O acordo que Brasil e Turquia celebraram com o Irã em torno da questão da política nuclear do país, com a novidade da importante participação brasileira num problema de política internacional de alcance mundial, levou a avaliações desencontradas entre nós. A julgar por pequena pesquisa pessoal na internet sem grandes preocupações de rigor, a discordância foi mesmo bem maior do que a manifestada na opinião internacional: os comentários de leitores a artigos sobre o assunto publicados no "New York Times" e no "The Economist" em seguida à divulgação do acordo eram em ampla maioria de aplauso a ele, vendo-o como algo favorável ao encaminhamento positivo das dificuldades com o Irã. As avaliações brasileiras tiveram caráter "projetivo", cada qual lançando sobre o evento aquilo que suas inclinações simpáticas ou hostis ao governo Lula recomendavam ou condicionavam.
Isso está provavelmente relacionado, em alguma medida, à especial desatenção do público brasileiro em geral a problemas de política externa. Se mesmo nos Estados Unidos, cuja política externa tem impacto de grande importância por toda a parte, poucos cidadãos prestam atenção real nela, que dizer aqui, onde a presença do país na cena internacional é tradicionalmente reduzida. Em tempos recentes (e governos, particularmente o atual) temos tido a intensificação dessa presença. O que não impede que o papel de Lula num acordo potencialmente tão importante quanto esse surja como algo desmesurado, passível de ser festejado como feito notável ou xingado e escarnecido como prova de arrogância ingênua.
A disposição crítica assumiu com frequência a forma de denunciar a aproximação do governo brasileiro com o Irã e Ahmadinejad, dado o caráter autoritário do regime iraniano. Não há dúvida quanto à impropriedade de manifestações de Lula com respeito ao Irã, exemplificada nas tolas declarações em que os conflitos relacionados com as eleições presidenciais do ano passado foram equiparadas a disputas entre torcidas de times de futebol. E cabe discutir, neste como em outros casos, até que ponto interesses nacionais de um tipo ou outro justificarão que se ignore o comprometimento dos direitos humanos em algum país que se queira ter como parceiro.
Relativamente ao acordo, porém, quanto mais problemático o regime ou o governo do Irã, tanto mais a festejar no fato de que se tenha conseguido obter dele a novidade de alguma disposição à negociação. É com certeza possível que o ânimo iraniano quanto ao acordo seja na verdade pérfido, visando a ganhar tempo para objetivos militares, como na leitura feita pelos EUA. Mas é patentemente absurdo, sobretudo diante da carta dirigida por Obama a Lula semanas antes do acordo, que a oportunidade que ele representava tenha sido não só rechaçada um dia após se saber que as discussões tinham tido êxito, mas que Obama se tenha mesmo empenhado pessoalmente em impedir tal desfecho. É claro que a posição sensata, em vez da reafirmação ultrarrápida da busca por sanções, teria sido, com os cuidados que parecessem necessários, a de conceder algum prazo, mínimo que fosse, para se tentar fazer do acordo obtido a plataforma inicial de um avanço diplomático mais seguro - e são igualmente claras as conexões da linha adotada com questões e pressões de política interna estadunidense que têm imposto distorções ao que presumivelmente se deveria esperar da atuação de Obama em assuntos de política externa, segurança e correlatos.
E é simplesmente lamentável ver um líder com o perfil especial de Obama trazer corroboração tão rápida à regra de que a estreiteza dos princípios do terreno baldio da política internacional leva a que supostos estadistas - ou, pior, estadistas verdadeiros - devam com frequência agir ao estilo de chefes de gangues de adolescentes.
De maneira afim à modéstia de nossa tradicional presença internacional, tem se repetida a pergunta de o que é que fomos fazer no Oriente Médio e em Teerã, tão longínquos - e a resposta, tomada como algo suficiente para desqualificar a iniciativa, tem se referido à busca de Lula por protagonismo. Mas há um sentido bem claro em que essa resposta serve para a pergunta de por que alguém se mete em política ou luta por ser presidente da República, e a questão real é a de se cabe esperar que o protagonismo pessoal dos líderes resulte na promoção de interesses coletivos ou até de valores compartilhados - nacionais ou, eventualmente, transnacionais ou globais. Quanto à Teerã longínqua, Celso Amorim ponderava que temos responsabilidades internacionais (somos até membros do Conselho de Segurança da ONU: caberia renunciar?), que têm crescido com nossa expansão. No mais, a diversificação de protagonismos nacionais em direção multipolar e mais igualitária é com certeza condição da construção institucional capaz de criar, quem sabe, política internacional mais democrática e responsável.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UFMG. Escreve mensalmente às quintas-feiras.
O acordo que Brasil e Turquia celebraram com o Irã em torno da questão da política nuclear do país, com a novidade da importante participação brasileira num problema de política internacional de alcance mundial, levou a avaliações desencontradas entre nós. A julgar por pequena pesquisa pessoal na internet sem grandes preocupações de rigor, a discordância foi mesmo bem maior do que a manifestada na opinião internacional: os comentários de leitores a artigos sobre o assunto publicados no "New York Times" e no "The Economist" em seguida à divulgação do acordo eram em ampla maioria de aplauso a ele, vendo-o como algo favorável ao encaminhamento positivo das dificuldades com o Irã. As avaliações brasileiras tiveram caráter "projetivo", cada qual lançando sobre o evento aquilo que suas inclinações simpáticas ou hostis ao governo Lula recomendavam ou condicionavam.
Isso está provavelmente relacionado, em alguma medida, à especial desatenção do público brasileiro em geral a problemas de política externa. Se mesmo nos Estados Unidos, cuja política externa tem impacto de grande importância por toda a parte, poucos cidadãos prestam atenção real nela, que dizer aqui, onde a presença do país na cena internacional é tradicionalmente reduzida. Em tempos recentes (e governos, particularmente o atual) temos tido a intensificação dessa presença. O que não impede que o papel de Lula num acordo potencialmente tão importante quanto esse surja como algo desmesurado, passível de ser festejado como feito notável ou xingado e escarnecido como prova de arrogância ingênua.
A disposição crítica assumiu com frequência a forma de denunciar a aproximação do governo brasileiro com o Irã e Ahmadinejad, dado o caráter autoritário do regime iraniano. Não há dúvida quanto à impropriedade de manifestações de Lula com respeito ao Irã, exemplificada nas tolas declarações em que os conflitos relacionados com as eleições presidenciais do ano passado foram equiparadas a disputas entre torcidas de times de futebol. E cabe discutir, neste como em outros casos, até que ponto interesses nacionais de um tipo ou outro justificarão que se ignore o comprometimento dos direitos humanos em algum país que se queira ter como parceiro.
Relativamente ao acordo, porém, quanto mais problemático o regime ou o governo do Irã, tanto mais a festejar no fato de que se tenha conseguido obter dele a novidade de alguma disposição à negociação. É com certeza possível que o ânimo iraniano quanto ao acordo seja na verdade pérfido, visando a ganhar tempo para objetivos militares, como na leitura feita pelos EUA. Mas é patentemente absurdo, sobretudo diante da carta dirigida por Obama a Lula semanas antes do acordo, que a oportunidade que ele representava tenha sido não só rechaçada um dia após se saber que as discussões tinham tido êxito, mas que Obama se tenha mesmo empenhado pessoalmente em impedir tal desfecho. É claro que a posição sensata, em vez da reafirmação ultrarrápida da busca por sanções, teria sido, com os cuidados que parecessem necessários, a de conceder algum prazo, mínimo que fosse, para se tentar fazer do acordo obtido a plataforma inicial de um avanço diplomático mais seguro - e são igualmente claras as conexões da linha adotada com questões e pressões de política interna estadunidense que têm imposto distorções ao que presumivelmente se deveria esperar da atuação de Obama em assuntos de política externa, segurança e correlatos.
E é simplesmente lamentável ver um líder com o perfil especial de Obama trazer corroboração tão rápida à regra de que a estreiteza dos princípios do terreno baldio da política internacional leva a que supostos estadistas - ou, pior, estadistas verdadeiros - devam com frequência agir ao estilo de chefes de gangues de adolescentes.
De maneira afim à modéstia de nossa tradicional presença internacional, tem se repetida a pergunta de o que é que fomos fazer no Oriente Médio e em Teerã, tão longínquos - e a resposta, tomada como algo suficiente para desqualificar a iniciativa, tem se referido à busca de Lula por protagonismo. Mas há um sentido bem claro em que essa resposta serve para a pergunta de por que alguém se mete em política ou luta por ser presidente da República, e a questão real é a de se cabe esperar que o protagonismo pessoal dos líderes resulte na promoção de interesses coletivos ou até de valores compartilhados - nacionais ou, eventualmente, transnacionais ou globais. Quanto à Teerã longínqua, Celso Amorim ponderava que temos responsabilidades internacionais (somos até membros do Conselho de Segurança da ONU: caberia renunciar?), que têm crescido com nossa expansão. No mais, a diversificação de protagonismos nacionais em direção multipolar e mais igualitária é com certeza condição da construção institucional capaz de criar, quem sabe, política internacional mais democrática e responsável.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UFMG. Escreve mensalmente às quintas-feiras.
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