O Estado de S.Paulo
Sabemos que cedo ou tarde um frio intenso nos espera, mas não fazemos fé com agasalho
Acreditar ou não acreditar que uma coisa exista é uma questão de grau. São Tomé era um moderado: vendo, acreditava. Radical era a operária imortalizada por Noel Rosa no samba Três apitos, que no inverno ia sem meias para o trabalho, não fazia fé com agasalho e nem no frio acreditava.
Pior, porém, são certos setores satelitizados pelo PT e pela CUT, que atribuem a atual catástrofe brasileira aos sete meses do governo Temer, e não aos 13 nefastos anos de Lula e Dilma Rousseff. Tais setores se recusam a enxergar a herança mais que maligna da passagem do PT pelo poder: três anos de recessão, o número de desempregados saltando para 13,5 milhões e uma contração de 9% no PIB por habitante, registrada pelo IBGE. Em vez de se debruçarem sobre esses dados, os referidos setores insistem em que o trem estava nos trilhos enquanto as rédeas da economia estavam nas mãos de Dilma e Guido Mantega, e só descarrilou por obra e graça dos “golpistas” e de Michel Temer, esquecidos, naturalmente, de que Temer só chegou ao Planalto porque foi o vice na chapa da sra. Rousseff. Exultaram, dias atrás, quando o Ibope informou que a impopularidade de Temer é alta e crescente. Entenderam os números da pesquisa como uma “demonstração” de seu esdrúxulo argumento e aproveitaram a ocasião para ulular estridentemente nas ruas e nas redes sociais contra as reformas que ora tramitam no Congresso.
A dimensão numérica da miopia acima descrita nada tem de surpreendente, dadas as condições da economia. O cidadão de baixa renda, geralmente pouco informado, descarrega sua indignação em qualquer autoridade que lhe pareça responsável pelos sofrimentos de sua família. Não apoia Temer porque é Temer quem exerce no momento a Presidência, como não apoiaria Lula, se fosse ele o ocupante da poltrona presidencial. Ou seja, as atitudes dessa categoria de cidadãos são imensamente importantes, uma vez que o processo democrático e as reformas precisam de apoio e também porque logo chegaremos às eleições de 2018, cruciais para o futuro do País. Imensamente importantes, mas perfeitamente compreensíveis.
Incompreensíveis – ou perversamente compreensíveis – são as atitudes de certos setores ditos “politizados”, que ora se destacam por aquele tipo de ignorância ossificada a que chamamos ideologia, ora por uma irrefreável tendência à omissão. Refiro-me, naturalmente, aos partidos e sindicatos de esquerda, aos chamados “movimentos sociais” e aos outrora ruidosos clérigos e intelectuais petistas. Suponho que muitos dos integrantes desses setores assistam a filmes de bangue-bangue. Se assistem, devem saber que a flecha comanche machuca muito quando penetra o corpo do soldado, e mais ainda quando é extraída, mas é imperativo extraí-la para que o soldado tenha alguma chance de sobrevivência. Da mesma forma, apregoar que a crise atual possa ser superada sem um ajuste fiscal doloroso é pura hipocrisia. Os desatinos do governo Dilma causaram estragos enormes no organismo econômico brasileiro, e não há receita indolor que os possa sanar.
Claro, a cegueira não explica todas as dificuldades que se antepõem à recuperação da economia e não é privilégio da oposição de esquerda. A radioatividade liberada pelo combate à corrupção atingiu várias das maiores empresas do País, contribuiu para a redução da atividade econômica e se alastrou sobre todo o sistema político. O PP e o PMDB, partidos situados no cerne da base do governo, foram atingidos em cheio. Contando com uma equipe econômica categorizada e propondo uma agenda de reformas relevante, o presidente Temer colecionou vitórias importantes no Congresso. Mas sua agenda reformista enfrenta dificuldades por todos os lados – que o diga o senador Renan Calheiros, que agora resolveu se dedicar ao esporte do “fogo amigo” contra Temer. Por todas essas razões e pela necessidade de aprimorar o projeto, a reforma da Previdência, por exemplo, não deve ser aprovada no primeiro semestre. A questão de fundo, no entanto, é o fato de sermos hoje um país de São Tomés. Sabemos que cedo ou tarde um frio intenso nos espera, mas não fazemos fé com agasalho. Como informa José Roberto Afonso, os gastos com o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) consomem atualmente 41% do orçamento do governo central. Há 20 anos, em 1997, esse porcentual era de 35%. Se não fizermos agora uma reforma previdenciária adequada, somente essa rubrica de gasto consumirá 63% do Orçamento em 2027 e mais de 70% a partir de 2030.
Até aqui, limitei-me à conjuntura imediata, ou seja, ao imperativo de ajustar as contas públicas, condição sine qua non para a retomada dos investimentos e a atenuação do desemprego. E a um requisito complementar, que só Deus e os eleitores podem satisfazer: evitar a volta do populismo nas eleições presidenciais do próximo ano. Outro experimento como o do passado recente obviamente arrastará o Brasil para um brejo sem fim.
Mas nosso grande desafio como país ainda não está na agenda. Para confrontá-lo efetivamente, precisamos, primeiro, reverter o legado maligno da era Lula-Dilma. Refiro-me à superação do que se tem chamado de armadilha do baixo crescimento, ou da renda média. Com um PIB por habitante de US$ 10 mil e crescendo 3% ao ano, em média, levaremos uma geração inteira para atingir o nível atual da Grécia, um dos países mais pobres da Europa. Um cenário péssimo, evidentemente, ao qual podemos acrescentar alguns toques sinistros. Para tanto, basta conjecturarmos que essa Grécia que estamos tentando ser – que por enquanto é uma miragem – terá uma distribuição de renda muito pior que a da Grécia atual. Mas este, no momento, é um cenário que não estamos em condições de enxergar.
* Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria
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