segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A flor do estado inconstitucional das coisas, por Ana Cristina Rosa

Folha de S. Paulo

Diversos direitos e garantias não passam de letra fria para a maioria negra da população nacional

A intolerância em relação à prática de religiões de matriz africana é outro exemplo de violação constitucional

É imperativo admitir que a perenidade do racismo no Brasil é fruto do estado inconstitucional das coisas. Independentemente do que preconizam as leis e as normas, a distância entre o direito formalizado (formal) e o que se materializa (material) é monumental.

Diversos direitos e garantias não passam de letra fria (ou melhor dizer morta?) para a maioria negra (56%, IBGE) da população nacional. A interseção étnico-racial presente na violação de direitos fundamentais (vida, liberdade, segurança, igualdade e propriedade estão previstos no Art. 5º da Constituição Federal) é gritante e deixa claro que características típicas desses preceitos, como universalidade e inalienabilidade, não se aplicam a todos.

Enquanto a CF protege a vida e proíbe a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, pretos e pardos são as principais vítimas de homicídios e da violência policial. O risco de um negro sofrer homicídio é quase o triplo em relação aos não negros. A situação é ainda mais drástica quanto à letalidade causada pela polícia: 86% dos mortos pelas forças policiais em 2024 eram pessoas negras (Atlas da Violência).

intolerância em relação à prática de religiões de matriz africana é outro exemplo de violação constitucional. Fere o direito à liberdade religiosa. Ainda assim, 74% dos terreiros do país foram ameaçados, depredados ou destruídos nos dois últimos anos (Respeite o Meu Terreiro). E, para além dos ataques a locais de culto, a violência atinge sacerdotes, adultos fiéis e crianças. Em SP, a polícia invadiu uma escola porque uma aluna desenhou a orixá Iansã numa atividade em sala de aula; no RJ, uma flor amarela associada à orixá Oxum presenteada por uma menina de cinco anos foi rejeitada pela professora evangélica que afirmou se tratar de "florzinha do Diabo."

Enfrentar o racismo institucionalizado na tentativa de reverter as desigualdades étnico-raciais normalizadas e naturalizadas ao longo dos séculos implica reconhecer o estado inconstitucional de muitas coisas e as coisas inconstitucionais do Estado no Brasil.

 

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