ALGO DE SUJO ALÉM DE FICHAS
Dora Kramer
Há 12 anos, em fevereiro de 1996, Michael Jackson estrelou um videoclipe filmado no morro Santa Marta, zona sul do Rio, sob a direção de Spike Lee, os mais taludos se lembram.
Não era a criatura assombrosa de hoje. Tratava-se do maior astro pop do mundo, festejado e recebido com deferência em toda parte. Menos nos territórios sob controle do narcotráfico na cidade cartão-postal do Brasil, onde precisou se enquadrar às normas do crime organizado para ter o direito de ir e vir, exatamente como ocorre agora com os candidatos a prefeito.
Precedidas de explícitas negociações entre a produção norte-americana e o comando do tráfico no morro, as filmagens só aconteceram mediante pagamento de pedágio aos donos do pedaço.
Um deles, o traficante Márcio Amaro de Oliveira, conhecido como Marcinho VP, morto em 2003 no presídio de Bangu 3 por colegas do crime, foi uma das estrelas do fim daquele verão de 96 e ganhou fama no papel de "negociador".
Escândalo? Nenhum. Estranheza? Nenhuma, excetuados talvez os desmancha-prazeres, preocupados com pormenores tais como o Brasil figurar no noticiário internacional como o lugar onde Michael Jackson precisou de salvo-conduto do narcotráfico para cantar e dançar. Debaixo do nariz das autoridades, tão deslumbradas com o séquito de Michael quanto complacentes para com a turma de Marcinho VP.
Corria o segundo ano do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, que, se achou aquilo anormal, guardou para si.
A vida seguiu seu ritmo. Lá como cá, a obsessão era a economia. Indo bem, tudo vai bem, ainda que a matança grasse, que o marginal capture prerrogativas do Estado e a segurança do público seja assunto restrito a momentos de fortes - e cada vez mais fugazes - emoções.
Também se combatia a violência a golpes de passeata - com contundência e eficácia semelhantes às dos candidatos atuais quando reagem às ameaças de fuzil com a entrega de manifestos à Justiça Eleitoral - e se cuidava mais dos acertos de contas do passado - na época literalmente, com a decisão de pagar indenizações aos perseguidos da ditadura - que dos horrores do presente.
Em janeiro de 1998, o então chefe do Gabinete Militar, general Alberto Cardoso, anunciava "estudos" para a montagem de um plano de combate ao narcotráfico em áreas específicas denominadas por ele de "zonas liberadas" espalhadas por diversos pontos do País.
No Rio, denunciava o general, já havia se instalado um legítimo "Estado paralelo" sob o comando do crime. Na concepção dele, delineava-se uma grave ameaça à soberania nacional.
"O Brasil ainda está muito longe de Medellín (Colômbia), mas a tomada de consciência não pode esperar mais."
O governador na ocasião, Marcello Alencar, tucano como o presidente da República, não gostou. À história da filmagem de Michael Jackson não impôs reparo, mas à denúncia sobre a existência de territórios dominados, reagiu indignado.
Repudiou a idéia e negou que o narcotráfico atuasse no Rio como uma rede de poder crescente. "Aqui o crime não é organizado porque não deixamos que seja", disse o governador, especialmente contrariado com a constatação do general de que o princípio da autoridade estava sendo banalizado e invertido.
Movimento cujo início foi localizado pelo general nos primeiros anos dos 80. Por isso, foi ironizado no boletim oficial do PDT, partido de Leonel Brizola, governador eleito em 1982, que vestiu a carapuça e passou a desqualificar os alertas como "coisa da direita".
Uma das poucas autoridades a se aliar à evidência apontada pelo ministro do Gabinete Militar, o prefeito do Rio, Luiz Paulo Conde, afirmou que a prefeitura já sofria restrições de acesso às favelas por parte das quadrilhas.
A despeito do perigo óbvio, das provas e das conseqüências, o tema foi e continua sendo tratado como coisa secundária. É lícita e saudável a preocupação do País com os candidatos "fichas-sujas", mas é desproporcional à atenção que deveriam merecer os episódios diários de demarcação de território na campanha do Rio.
Um desonesto não pode indignar mais que um assassino.
O problema não é local nem superficial. Nada é mais importante nesses tempos de campanha que o fato de os pretendentes a gestores da segunda maior cidade do País prestarem obediência compulsória a marginais.
Sem paranóia, é uma ameaça à soberania da legalidade.
Nos "fichas-sujas", o Congresso, se quiser, dá um jeito, mudando a lei. Se não quiser, o eleitor pode ele mesmo começar a fazer a limpeza pelo voto.
Agora, contra os "vidas-sujas" estamos indefesos. Se deputados e senadores se submetem aos ditames do crime na busca de voto, imagine-se a situação do morador dependente total dos chefes das "comunidades".
Hoje os pretendentes a prefeito do Rio são impedidos de circular, amanhã começam a correr risco de vida, depois de amanhã interditam-se candidatos a presidente e assim vai até que o Estado - já subtraído da prerrogativa do ataque - saia da defensiva para cair na rendição.
Dora Kramer
Há 12 anos, em fevereiro de 1996, Michael Jackson estrelou um videoclipe filmado no morro Santa Marta, zona sul do Rio, sob a direção de Spike Lee, os mais taludos se lembram.
Não era a criatura assombrosa de hoje. Tratava-se do maior astro pop do mundo, festejado e recebido com deferência em toda parte. Menos nos territórios sob controle do narcotráfico na cidade cartão-postal do Brasil, onde precisou se enquadrar às normas do crime organizado para ter o direito de ir e vir, exatamente como ocorre agora com os candidatos a prefeito.
Precedidas de explícitas negociações entre a produção norte-americana e o comando do tráfico no morro, as filmagens só aconteceram mediante pagamento de pedágio aos donos do pedaço.
Um deles, o traficante Márcio Amaro de Oliveira, conhecido como Marcinho VP, morto em 2003 no presídio de Bangu 3 por colegas do crime, foi uma das estrelas do fim daquele verão de 96 e ganhou fama no papel de "negociador".
Escândalo? Nenhum. Estranheza? Nenhuma, excetuados talvez os desmancha-prazeres, preocupados com pormenores tais como o Brasil figurar no noticiário internacional como o lugar onde Michael Jackson precisou de salvo-conduto do narcotráfico para cantar e dançar. Debaixo do nariz das autoridades, tão deslumbradas com o séquito de Michael quanto complacentes para com a turma de Marcinho VP.
Corria o segundo ano do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, que, se achou aquilo anormal, guardou para si.
A vida seguiu seu ritmo. Lá como cá, a obsessão era a economia. Indo bem, tudo vai bem, ainda que a matança grasse, que o marginal capture prerrogativas do Estado e a segurança do público seja assunto restrito a momentos de fortes - e cada vez mais fugazes - emoções.
Também se combatia a violência a golpes de passeata - com contundência e eficácia semelhantes às dos candidatos atuais quando reagem às ameaças de fuzil com a entrega de manifestos à Justiça Eleitoral - e se cuidava mais dos acertos de contas do passado - na época literalmente, com a decisão de pagar indenizações aos perseguidos da ditadura - que dos horrores do presente.
Em janeiro de 1998, o então chefe do Gabinete Militar, general Alberto Cardoso, anunciava "estudos" para a montagem de um plano de combate ao narcotráfico em áreas específicas denominadas por ele de "zonas liberadas" espalhadas por diversos pontos do País.
No Rio, denunciava o general, já havia se instalado um legítimo "Estado paralelo" sob o comando do crime. Na concepção dele, delineava-se uma grave ameaça à soberania nacional.
"O Brasil ainda está muito longe de Medellín (Colômbia), mas a tomada de consciência não pode esperar mais."
O governador na ocasião, Marcello Alencar, tucano como o presidente da República, não gostou. À história da filmagem de Michael Jackson não impôs reparo, mas à denúncia sobre a existência de territórios dominados, reagiu indignado.
Repudiou a idéia e negou que o narcotráfico atuasse no Rio como uma rede de poder crescente. "Aqui o crime não é organizado porque não deixamos que seja", disse o governador, especialmente contrariado com a constatação do general de que o princípio da autoridade estava sendo banalizado e invertido.
Movimento cujo início foi localizado pelo general nos primeiros anos dos 80. Por isso, foi ironizado no boletim oficial do PDT, partido de Leonel Brizola, governador eleito em 1982, que vestiu a carapuça e passou a desqualificar os alertas como "coisa da direita".
Uma das poucas autoridades a se aliar à evidência apontada pelo ministro do Gabinete Militar, o prefeito do Rio, Luiz Paulo Conde, afirmou que a prefeitura já sofria restrições de acesso às favelas por parte das quadrilhas.
A despeito do perigo óbvio, das provas e das conseqüências, o tema foi e continua sendo tratado como coisa secundária. É lícita e saudável a preocupação do País com os candidatos "fichas-sujas", mas é desproporcional à atenção que deveriam merecer os episódios diários de demarcação de território na campanha do Rio.
Um desonesto não pode indignar mais que um assassino.
O problema não é local nem superficial. Nada é mais importante nesses tempos de campanha que o fato de os pretendentes a gestores da segunda maior cidade do País prestarem obediência compulsória a marginais.
Sem paranóia, é uma ameaça à soberania da legalidade.
Nos "fichas-sujas", o Congresso, se quiser, dá um jeito, mudando a lei. Se não quiser, o eleitor pode ele mesmo começar a fazer a limpeza pelo voto.
Agora, contra os "vidas-sujas" estamos indefesos. Se deputados e senadores se submetem aos ditames do crime na busca de voto, imagine-se a situação do morador dependente total dos chefes das "comunidades".
Hoje os pretendentes a prefeito do Rio são impedidos de circular, amanhã começam a correr risco de vida, depois de amanhã interditam-se candidatos a presidente e assim vai até que o Estado - já subtraído da prerrogativa do ataque - saia da defensiva para cair na rendição.
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