quinta-feira, 7 de agosto de 2008

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

A FOME SEGUNDO JOSUÉ
Rosana Magalhães


“A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife”, escreveu Josué. Ele foi médico, professor, sociólogo e escritor. Se vivo estivesse, completaria 100 anos em setembro. O pernambucano Josué de Castro foi o primeiro pensador a refletir sobre a natureza e a complexidade das diferentes formas de privação alimentar no País. Não por acaso, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão do qual ele é patrono, deslocará sua reunião plenária, em setembro, de Brasília para Recife, cidade onde nasceu Josué – em evento que deverá contar com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As idéias de Josué, já no início do século passado, uniram os avanços da bioquímica e da fisiologia, ultrapassaram as fronteiras das disciplinas biomédicas e introduziram categorias analíticas ligadas à sociologia, geografia, antropologia e economia. O descompasso entre as condições salariais e as necessidades alimentares dos trabalhadores o motivou a refletir sobre o papel do Estado e das políticas de governo. Ele associou a fome aos dilemas da construção da nação, do Estado e do desenvolvimento econômico e social.

Hoje, 100 anos depois do nascimento e 35 anos após sua morte, a miséria e a pobreza apresentam novos contornos, novas perspectivas de intervenção pública. A fome continua tema prioritário e exigência política no Brasil, que ainda não conseguiu erradicar a indigência (a incapacidade de obter a renda necessária para a garantir a mera sobrevivência física).

Hoje, no entanto, diferentemente da realidade dos anos 30, 40 e 50, analisados por ele, o quadro de miséria e fome tornou-se mais complexo, mais urbano e segmentado – a partir das clivagens de gênero, etnia, escolaridade e inserção ocupacional. À medida que o Brasil exibe recordes de produção agrícola e um PIB per capita que o insere entre os países mais ricos do mundo, nossos maiores limites para equacionar a fome estão ligados à questão das prerrogativas e dos direitos de cidadania. Ainda assim, ao formular um conceito de desenvolvimento que não é puramente econômico, mas que remete aos dilemas da integração e a emancipação humana, a obra mantém uma proximidade inquestionável com o debate atual em torno das políticas sociais e da cidadania. Estar bem nutrido para Josué de Castro é, antes de mais nada, uma exigência ética.

Sobre as opções políticas para a solução da fome e da miséria, Josué também nos ensinou a recusar o assistencialismo e a fragmentação das ações e evitar a perpetuação de programas setoriais que não buscam a convergência em torno de resultados comuns. Neste sentido, o esforço de fazer dialogar as diferentes agendas das políticas públicas, possibilitar novos arranjos de governança, incluindo múltiplos atores, instituições e grupos sociais em torno da questão da segurança alimentar, atualiza e expande a obra e o pensamento de Josué de Castro.

» Rosana Magalhães, nutricionista, é pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz.

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