É cristalina a lógica política detrás dos crimes descritos na Ação Penal
470, que agora entra em fase decisiva de julgamento no Supremo Tribunal
Federal. Só não a vê quem não quer ou não pode, por ingenuidade política ou
cegueira ideológica.
A compra de apoio político de pequenos partidos foi a forma encontrada pela
cúpula do governo Lula, ao início de seu primeiro mandato, para atingir três
objetivos simultâneos: 1) Formar uma maioria parlamentar que a aliança
eleitoral vitoriosa não assegurava; 2) formá-la sem uma efetiva partilha do
poder político com o PMDB, o maior partido no Congresso; e 3) preservar para o
PT o maior espaço possível na ocupação do aparelho do Estado.
Quem acompanha a vida política brasileira há de se lembrar de que José
Dirceu havia costurado um acordo preferencial com o PMDB, recusado por Lula,
sob o argumento de que ele se tornaria refém do maior partido no Congresso. Há
de se lembrar também de que os partidos beneficiados pelo dinheiro do
"valerioduto" praticamente dobraram o tamanho de suas bancadas na
Câmara. Há de se lembrar ainda que o primeiro Ministério do governo Lula se
caracterizava tanto pela sobrerrepresentação do PT quanto pela
sub-representação do PMDB, quando comparados os postos ministeriais e cargos de
direção em estatais e agências reguladoras ocupados por representantes desses
partidos com o tamanho de suas respectivas bancadas no Congresso.
É falso dizer que o "mensalão" faz parte da lógica política do
presidencialismo de coalizão no Brasil. O funcionamento "normal"
deste supõe que o presidente construa e mantenha a sua maioria parlamentar valendo-se
da nomeação de representantes dos partidos aliados para cargos no governo, bem
como da liberação preferencial das emendas parlamentares dos membros da base
aliada. Coisa bem diferente é a compra de apoio político-parlamentar mediante
paga em dinheiro.
A mais importante das diferenças está em que os mecanismos
"normais" de formação e manutenção da maioria parlamentar são
públicos e, portanto, passíveis de controle e crítica pela sociedade. Basta ler
o Diário Oficial e acompanhar as votações no Congresso com atenção. Fazem esse
papel as oposições e a imprensa, entre outros. Os atos e contratos que decorrem
das nomeações para o Executivo e liberações de emendas parlamentares estão sob
o domínio da lei e o crivo dos órgãos de controle interno e externo do
Executivo.
Já a compra literal de apoio é, por definição, uma operação subterrânea, que
se sabe criminosa e por isso busca evadir-se de qualquer controle público. Ela
incha a face oculta do governo e engorda vários negócios ilícitos, uma vez que
esquemas de mobilização e distribuição ilegal de recursos acabam por servir,
naturalmente, a múltiplos propósitos.
O padrão "normal" de funcionamento do presidencialismo de coalizão
no Brasil está longe do "ideal". É possível aperfeiçoar o sistema e
necessário insistir em que as coalizões tenham maior consistência programática.
As críticas ao padrão "normal" não devem, porém, obscurecer a
singular degradação a que a compra de apoio mediante paga representa para o
presidencialismo de coalizão, em geral, e para a representação parlamentar, em
particular. Com a operação de compra e venda o Executivo sequestra o mandato
recebido pelo parlamentar e viola o princípio de que este representa os
interesses de seus eleitores. Se no padrão "normal" o apoio vem em troca
da construção de uma ponte, por exemplo, na relação de compra e venda os únicos
interesses representados são os dos partícipes do intercâmbio
político-comercial.
Ao degradar a representação parlamentar, o "mensalão" reflete uma
certa concepção sobre o sistema representativo. Segundo essa concepção, a
"vontade popular" só encontra expressão verdadeira e genuína no
presidente da República. Tal ideia tem larga tradição doutrinária, dentro e
fora do Brasil, à esquerda e à direita. Ela encontra eco na célebre afirmação
feita por Lula em 1993 de que o Congresso seria composto por uma maioria de
"300 picaretas". Dizer que o "mensalão" tem raiz
doutrinária seria ridículo. É certo, entretanto, que ele revela o desapreço de seus
autores pela instituição da representação parlamentar, como se esta fosse uma
parte menor do regime democrático.
Além de crime, o "mensalão" foi um erro. A ideia de que seria
possível operar tal esquema sem deixar traços e sem se expor a enorme risco
demonstra um misto de amadorismo e arrogância de quem o concebeu e operou.
Indica também a resistência a um efetivo compartilhamento do poder por parte de
um partido que se havia aberto às alianças eleitorais, mas relutava a ceder
espaços na ocupação do aparelho do Estado, uma vez conquistado o governo. Lula
aprendeu com o erro, embora continue a reiterar a tese de que não houve crime.
E aprendeu rápido.
No calor da hora, ao mesmo tempo que ventilava a tese do "caixa 2"
para fazer frente ao escândalo, o então presidente tratou de incorporar o PMDB
plenamente ao seu governo e à aliança eleitoral que o levaria à reeleição em
2006. Governou em seu segundo mandato com a mais ampla base de partidos da
história do presidencialismo de coalizão no Brasil até aquele momento. Depois
do susto, deu-se a exacerbação do "padrão normal".
Não se trata aqui de demonizar o personagem, muito menos de indigitar
culpados. Faço apenas um raciocínio político com base nos fatos conhecidos.
Nesse passo, chega-se à conclusão de que a compra de apoio derivou de uma
escolha política tomada no alto comando do governo para assegurar a
"governabilidade" sem impor maior restrição às pretensões hegemônicas
do PT.
Ao que tudo indica, com o "mensalão" o chefe da Casa Civil tratou
de dar consequência prática às preferências do presidente da República. Resta
saber se Lula tinha conhecimento e/ou interveniência de algum tipo no esquema
montado para a compra sistemática de apoio político ao seu governo.
Diretor Executivo do iFHC; membro do GACINT-USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
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