O
regime presidencial, o voto proporcional e a relação entre Poderes favorecem
aventureiros
O
destino dos EUA, a República mais antiga, mais estável, mais rica e mais
poderosa dos tempos modernos, está em alto risco e, apesar de seus sintomas de
decadência terem surgido na década de 1960, ninguém é capaz, hoje, de prever
seu futuro. O destino de uma das maiores democracias do mundo, que alterna
períodos de relativa estabilidade com outros de autoritarismo, períodos de alto
crescimento econômico com outros de retrocesso, é incerto até mesmo quanto ao
ano que começa. Refiro-me ao Brasil, onde não se pode hoje prever em que
direção irá o atual retrocesso econômico e sanitário, nem se, e como,
enfrentaremos os desafios do aumento do desemprego e da pobreza.
Os dois países não estão isolados nessa condição de enfrentar desafios que parecem maiores do que os recursos de que dispõem para superá-los, entre os quais as ameaças à liberdade e à igualdade. Diferentemente das décadas de 1970 e 1980, em que a chamada onda democrática liberou do autoritarismo dezenas de países, as ameaças à democracia voltaram a se espalhar por todo o mundo – incluídas as Américas do Sul, Central e, agora, a América do Norte.
O
fenômeno tem sido tratado como neopopulismo, ou neonacionalismo, e
frequentemente associado ao surgimento de lideranças com perfil centralizador e
autoritário, que defendem um regime em que o poder seja exercido contra os
inimigos da nação em relação direta entre o líder e “o povo”. Alguns autores
consideram que o requisito essencial para a definição do líder populista é que
o principal obstáculo à sua conjunção carnal com o povo são as instituições,
quaisquer que sejam. Daí a sua necessidade de esvaziar, contornar, enfraquecer
ou demolir as instituições vigentes.
Nos
últimos anos se multiplicaram, na literatura acadêmica, nos think tanks e na mídia,
estudos e opiniões centrados na explicação do perfil dos líderes neopopulistas.
Poucos são os que levam em conta que o perfil populista é um estilo de
liderança muito frequente em todos os países e em todos os níveis de governo, e
a questão fundamental é saber como se tornou possível que um aventureiro,
muitas vezes desconhecido ou sem experiência executiva, alcance o mais alto
poder em uma nação.
Dessa
perspectiva, que considero a mais adequada para entender as incertezas hoje
enfrentadas pelo Brasil e pelos EUA, trata-se de compreender as condições
políticas que tornaram possível uma sociedade moderna e complexa entregar
livremente o poder a um líder populista. Os muitos anos de vida pública que
dediquei a estudar o sistema político brasileiro me permitem apontar o regime
presidencialista, o sistema de voto proporcional e a relação entre os Poderes
constituídos como o conjunto de fatores que tornam a Nação vulnerável ao
aventureirismo em sua principal encarnação, o populismo.
O
presidencialismo é um regime de governo que, por definição, produz uma divisão
entre Poderes distintos de igual legitimidade, mas não garante que as maiorias
que elegem esses Poderes sejam idênticas, ou sequer compatíveis. A convivência
produtiva entre o presidente e o Parlamento depende sempre de um conjunto
complexo de fatores, sobre os quais o presidente tem pouco ou nenhum controle –
as relações entre partidos, as agendas dos parlamentares, as insatisfações, as
necessidades e os ideais do eleitorado. Com isso a probabilidade de cumprir
suas promessas, ou mesmo de simplesmente controlar a gestão pública, tende a
ser baixa, abrindo as portas para candidatos que prometem tudo a custo de nada.
Os quais, se eleitos, farão o mesmo percurso, agregando mais insatisfação ao
ânimo popular, e reiniciando percurso semelhante.
Daí
decorre uma tendência que vem sendo observada em toda parte: a corrosão da
legitimidade das democracias representativas, uma vez que o representante é
visto como um usurpador, que não ouve, não cumpre seus compromissos com os
representados e nem sequer os respeita.
No
regime parlamentar, que defendo, o presidente representa o Estado, mas quem
exerce o governo é, por definição, o líder de um partido majoritário ou capaz
de formar uma coalizão majoritária. O mandato do governo depende da maioria
parlamentar, e ambos dependem de cooperar para cumprir as expectativas do
eleitorado.
O
sistema de voto proporcional no Brasil exacerba a perda de legitimidade da
democracia representativa e os obstáculos à capacidade presidencial de
governar. Exercido com lista aberta em megadistritos, ele produz, por
construção, uma relação opaca entre representante e representado, o que reforça
os sentimentos de frustração e impotência do eleitor, sentimentos também
encontrados nos EUA.
Desde
o fim do mandato de Bill Clinton, em 2000, apenas Barack Obama foi vitorioso
nas urnas, graças a um colégio eleitoral concebido para limitar o voto popular
direto. O sentimento de frustração e impotência do eleitor serviu de catalisador
do ódio mobilizado por um aventureiro para demolir as instituições e
perpetuar-se no poder. Não conseguiu, mas seu legado de desmoralização da
legalidade vigente e da convivência pacífica entre cidadãos terá consequências
imprevisíveis.
*Senador (PSDB-SP)
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