quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Martin Wolf - Lições da grande inflação

Financial Times / Valor Econômico

O regime de metas de inflação sobreviveu a dois grandes testes, mas mais choques grandes podem vir, alguns deles até muito em breve

O discurso de Jerome Powell, presidente do Federal Reserve, no Simpósio Econômico de Jackson Hole no mês passado, foi o mais próximo de um hino da vitória que um banqueiro central sensato poderia proferir. “A inflação caiu significativamente”, observou ele. “O mercado de trabalho não está mais superaquecido e as condições agora são menos apertadas do que aquelas que prevaleciam antes da pandemia. As restrições de oferta se normalizaram”. Ele acrescentou que “com uma redução apropriada da contenção política, há bons motivos para pensar que a economia retornará a uma inflação de 2%, mantendo ao mesmo tempo um mercado de trabalho forte”. Tempos felizes, portanto!

Este é um resultado melhor do que eu e muitos outros esperávamos há dois anos. De fato, o sucesso em reduzir a inflação com apenas um modesto enfraquecimento da economia real é uma surpresa bem-vinda. O desemprego, observou Powell, está em 4,3% “ainda baixo pelos padrões históricos”. Na zona do euro e no Reino Unido, a perspectiva é menos promissora. Mas lá também as perspectivas são de taxas de juros mais baixas e uma demanda mais forte. Como ele observou, um dos motivos desse sucesso foi a estabilidade das expectativas de inflação no longo prazo. Isso é o que o regime de “meta de inflação média flexível” pretendia alcançar. Mas também vale a pena acrescentar que houve um pouco de sorte, especialmente em relação à oferta de trabalho.

Apesar desses resultados, lições precisam ser aprendidas, porque algumas das histórias que estão sendo contadas sobre esse episódio não estão certas. Erros foram cometidos na compreensão da economia da covid. Erros também foram cometidos ao atribuir o aumento dos preços apenas a choques de oferta inesperados. A demanda também desempenhou um papel. É altamente provável que grandes choques de oferta venham a ocorrer novamente, assim como haverá outras crises financeiras. Os bancos centrais precisam aprender com essas experiências, mesmo acreditando que esse episódio não terminou tão mal.

Uma grande questão é se a inflação vai se estabilizar. Outra é até que ponto o salto nas taxas de juros será revertido. Estamos em um mundo em que as taxas de juros serão permanentemente mais altas? Se assim for, o medo do limite inferior nas taxas de juros já desapareceu?

Um ponto importante é que é mais útil ver o que aconteceu como um choque no nível geral de preços do que um salto nas taxas de inflação. Assim, entre dezembro de 2020 e 2023, o índice de preços ao consumidor subiu perto de 18% nos EUA e na zona do euro, e 21% no Reino Unido. Isso está muito longe dos quase 6% que supostamente eram a meta para três anos. Não admira que tantos reconheçam uma “crise do custo de vida”. Além disso, esse é um salto permanente. Sob a meta de inflação, esses são choques passados. Isso não significa que eles logo serão esquecidos.

Decisivamente, choques temporários na oferta não causam saltos permanentes no nível geral de preços. A demanda precisa, pelo menos, acomodar - e é mais provável que ela estimule - saltos permanentes nos preços. Neste caso, as respostas fiscais e monetárias ao choque da covid foram fortemente expansionistas. De fato, a pandemia foi tratada quase como se fosse outra grande depressão. Portanto, não surpreende que a demanda tenha disparado assim que ela terminou. No mínimo, isso acomodou o efeito geral dos aumentos de preços de produtos e serviços escassos. Pode-se argumentar que isso impulsionou grande parte da demanda que gerou esses aumentos.

O monetarista britânico Tim Congdon, alertou sobre isso, conforme observei em maio de 2020. Pense na famosa “equação de trocas” do economista americano Irving Fisher: MV=PT (onde M é dinheiro, V é velocidade de circulação, P o nível de preços e T o volume das transações).

Entre os quartos trimestres de 2019 e 2020, a proporção de M3 (dinheiro amplo) em relação ao PIB aumentou em 15 pontos porcentuais na zona do euro, 17 pontos porcentuais nos EUA, 20 pontos porcentuais no Japão e 23 pontos porcentuais no Reino Unido. Isso foi um excesso monetário global. Milton Friedman teria dito que nada era mais certo do que as subsequentes “escassez de oferta” e níveis elevados dos preços. A política fiscal contribuiu para agravar a situação. Sim, não se pode direcionar a economia apenas pelo dinheiro em tempos normais. Mas um artigo acadêmico do centro de estudos Bruegel sugere que é em condições instáveis que o dinheiro importa para a inflação. O Banco de Compensações Internacionais (BIS) argumentou de forma semelhante. Assim, grandes expansões (e contrações) monetárias não devem ser ignoradas.

Essa expansão monetária foi pontual: desde 2020 os índices foram autorizados a cair de volta para onde começaram, à medida que o PIB nominal disparou. Os monetaristas previam que a inflação iria se estabilizar, como aconteceu. Esse resultado foi ajudado por expectativas de inflação estável e, em alguns lugares, pela imigração.

O fato de o grande salto nos níveis de preços tenha se devido à interação entre os gargalos na oferta e a forte demanda induzidos pelo pós-pandemia e a guerra na Ucrânia não significa que esta última tenha sido um grande erro em relação às alternativas. Uma demanda mais fraca também teria imposto grandes custos econômicos e sociais. Mas precisamos analisar rigorosamente essas alternativas porque grandes choques provavelmente ocorrerão novamente.

Este último, no entanto, já passou. E agora? Uma grande questão é se a inflação de fato vai se estabilizar. Outra é até que ponto o salto nas taxas de juros será revertido. Estamos em um mundo em que as taxas de juros serão permanentemente mais altas? Se assim for, o medo do limite inferior nas taxas de juros já desapareceu?

O fato de as economias terem sido robustas em sua maioria, apesar do aperto monetário, sugere que esse poderá ser o caso. Mas isso cria uma ameaça à estabilidade financeira e fiscal futura: novas dívidas serão muito mais caras do que as antigas. É plausível que o envelhecimento, as taxas de poupança menores, as pressões fiscais e as grandes necessidades de investimentos, principalmente para o clima, se combinem para tornar a dívida pública e privada consistentemente mais cara. Se for assim, esse potencial problema de “alto por mais tempo” poderá se mostrar um pesadelo.

O regime de metas de inflação enfrentou dois grandes testes: a crise financeira e a covid. Ele sobreviveu a ambos, ou quase. Mas mais choques grandes podem vir, alguns deles até muito em breve. (Tradução de Mário Zamarian)

 

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