- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O dia seguinte do impeachment encerra um capítulo importante da história recente, mas ainda há muitas dúvidas sobre o futuro do país. No fundo, a crise vai além da enorme ingovernabilidade que marcou o segundo governo Dilma - verdadeiro motivo de sua deposição. O que está em jogo é o ocaso do modelo político que vigorou de 1993 a 2013, quando presidentes de partidos diferentes foram capazes de aprovar e implementar uma agenda de políticas públicas, em linhas gerais, bem-sucedida, com apoio do Congresso, das elites econômicas e do eleitorado.
A pergunta que fica é se o presidente Temer conseguirá recuperar a estabilidade governativa perdida, sendo que agora terá de realizar grandes mudanças para tirar o Brasil da recessão, da crise social e da situação de descrédito popular em relação ao sistema político. Isso implicará a aprovação de reformas nem sempre populares, e o apoio que recebeu até o momento derivou mais de uma coalizão contra Dilma e o PT do que da construção de uma coalizão alicerçada em um projeto de nação. O paradoxo de Temer é que ele tem, pelo menos formalmente, um enorme leque de partidos a seu favor, mas essa junção é bastante tênue e não tem um grupo partidário que lidere inequivocamente o governismo.
A comparação com o período 1993/13 realça a diferença. Do ponto de vista político, o mais importante pilar da estabilidade dos "vinte anos dourados" foi a estruturação do sistema partidário nacional em torno da polarização PSDB-PT. Durante um bom tempo, a briga entre eles foi muito saudável, porque se ancorava em críticas que limitavam o poder ou então ajudavam no debate das políticas públicas. Não obstante tenha havido embates que iluminavam as diferenças entre as duas siglas, igualmente foi possível aprender de um período para o outro, havendo continuidades aperfeiçoadas. Foi assim que, sobretudo na passagem do segundo mandato de FHC para a gestão Lula, o Brasil conseguiu combinar estabilidade e mudança nas políticas públicas na medida certa.
A força desses dois partidos não quer dizer que dominassem sozinhos o jogo. Havia um conjunto grande de agremiações que conseguiram conquistar postos nos governos subnacionais e, ademais, detinham um número importante de cadeiras no Congresso Nacional, tornando-as relevantes para a formação dos governos tucanos e petistas. Muitas dessas siglas eram extremamente fluídas, com mudanças constantes de seus integrantes, quando não dos próprios nomes dos partidos. De todo modo, o grupo que comandava o governo federal tinha que conversar e negociar, embora os governos Fernando Henrique e Lula, principalmente, dessem o tom da agenda pública.
A hegemonia baseada na polarização PSDB-PT tinha como fiel da balança, especialmente no plano nacional, o PMDB. Claro que, em determinados momentos, outras agremiações foram fortes, como o PFL do primeiro governo FHC. Mas, na maior parte do período, foram os pemedebistas, sempre flexíveis perante o poder vigente, que deram o principal suporte de governabilidade. Embora os presidentes Lula e Fernando Henrique tivessem agendas claramente definidas e aprovadas pelas urnas, dando legitimidade a seus projetos, eles tiveram, assim como Dilma, que obter apoio do PMDB e adjacências por meio de cargos, verbas e, hoje sabemos bem, com ajuda no financiamento de campanha, nem sempre por meios lícitos.
A crise política recente gerou um caldo de cultura fortemente avesso ao patrimonialismo e à corrupção derivados do "lado oculto" do presidencialismo de coalizão. Não por acaso o governo Temer, mesmo que pouco conhecido pelos eleitores, é por ora rechaçado pela grande maioria da população, não só descontente com a situação econômica e social, mas porque não viu grandes mudanças no método de montagem do governo em comparação ao passado. A coalizão política do impeachment ainda não percebeu que a maioria dos eleitores quer algo mais do que a deposição da presidente.
A construção de um novo modelo de coalizão política, estável e capaz de liderar reformas, vai depender da forma como os principais partidos vão se reconstruir após o impeachment. Observando as eleições municipais de 2016, já se percebe o rol de dificuldades que as maiores siglas terão pela frente. Nas duas maiores capitais, São Paulo e Rio, os líderes nas pesquisas são de pequenas legendas - Russomano em São Paulo e Crivella no Rio, ambos do PRB. Em outras capitais importantes, como Porto Alegre e Curitiba, também lideram políticos de partidos menores. Claro que esse sinal ainda é insuficiente, pois não capta o conjunto dos municípios e ainda não é o resultado final do pleito local. De todo modo, nas disputas anteriores o quadro era bem diferente nas grandes cidades.
A reconstrução dos partidos passa não só pela recuperação da credibilidade junto ao eleitorado, como também pela montagem de plataformas políticas que definam os meios necessários para se alcançar os fins desejados pela sociedade brasileira. Muito do que almeja o eleitorado está na Constituição de 1988, na sua defesa da democracia e no combate à desigualdade. Mas os problemas se tornaram mais complexos e novos temas entraram na agenda. E diante de novidades como a questão da mobilidade urbana e da sustentabilidade, e de questões mais amplas e sistêmicas como o aumento da produtividade e a melhoria dos serviços públicos, o que tem sido proposto, em geral, pelas agremiações partidárias ora beira o truísmo, ora se ancora na defesa do status quo.
Diante dessa situação, será que os partidos terão coragem de fazer um "aggiornamento" e mudar sua forma de se comportar perante o poder, abandonando o governismo patrimonialista, além de defender ideias consistentes e projetos inovadores? A resposta a essa pergunta dependerá de como vão construir sua estratégia até a eleição presidencial de 2018. Como o governo Temer é atípico, pela forma como chegou ao poder - um recall por eleição indireta, como já escrevi aqui na coluna -, pela enorme crise que terá de enfrentar e pelo pouco tempo de mandato, os principais partidos que o apoiam têm tido uma postura esquizofrênica. De um lado, pelo menos até o impeachment, dizem que vão apoiar a reconstrução do país, incluindo a votação de reformas impopulares. Mas, de outro, temem perder força junto ao eleitorado ou, caso a gestão seja bem-sucedida, se tornarem sócios minoritários no projeto de poder.
O único que não pode abandonar o barco é o próprio PMDB, embora suas clássicas divisões possam fazer com que ele, mais uma vez, chegue fraturado a 2018. Mas por ora o mais provável é que seja o que o PSDB foi para FHC e o PT para Lula. Só que para isso é necessária uma fidelidade partidária resultante de um projeto de governo - e não só de poder. O documento que representaria esse ideário estruturador seria "Uma Ponte para o Futuro", obra comandada pelo ministro Moreira Franco. Lendo atenciosamente o texto, percebe-se um conjunto de ideias cuja prova de fogo se dará no comportamento dos pemedebistas frente às reformas propostas ao Congresso. Será que o a maioria dos membros do partido está disposta a adotar esse receituário de corte liberal? Esse é o maior enigma político dos próximos meses.
Um dos líderes da hegemonia anterior, o PSDB vive uma situação esquisita. Muitas das ideias do governo Temer estão mais próximas dos tucanos do que dos pemedebistas. Mas os louros do sucesso, caso ocorra, não ficará com os tucanos. Ademais, o apoio ao impeachment de Dilma, e não a aposta na deposição da chapa toda, por conta do financiamento da eleição de 2014, fez com que o PSDB adotasse uma solução mais realista e efetiva, mas isso o enfraqueceu como transformador da ética, num momento de grande descrédito da classe política. Os líderes do partido terão que lutar nos próximos dois anos não só contra as denúncias que aparecem contra eles na Operação Lava-Jato e adjacências, mas terão que convencer o eleitorado de sua estratégia de priorizar a queda da presidente, em vez da punição a todos os que estavam relacionados à corrupção. Afinal, um historiador no futuro poderá perguntar: o que foi o impeachment, antipetismo ou limpeza do sistema?
O outro baluarte do sistema anterior, o PT, tem um cenário imediato ainda mais complicado. Sempre poderá dizer que houve injustiças e erros no processo de impeachment, inegavelmente - a maior delas foi a condução feita por Eduardo Cunha, completamente ilegal e imoral. Mas é preciso fazer uma autocrítica mais profunda, pelos enormes erros de políticas públicas e, sobretudo, no campo ético. E mais: precisa reconstruir seu ideário, diante das mudanças ocorridas nos últimos anos, dando prioridade à formulação de um projeto consistente de governo, em vez de sempre esperar que Lula salve o partido por meio de seu carisma. Mais partido e menos personalismo fariam bem ao PT, pois a desigualdade brasileira dá chances eleitorais a uma proposta viável de centro-esquerda.
Se os grandes partidos não se reconstruírem para 2018, essa disputa será parecida com a de 1989, marcada pela fragmentação e pela possibilidade de vitória de um "outsider". Nesse cenário, uma nova crise de governabilidade teria grandes chances de ocorrer - tal qual um novo processo de impeachment. Oxalá tenhamos aprendido com o passado.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
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