Governo
inepto e irresponsável faz o País reviver o pesadelo de 1983
A
fome assola o Brasil, grande produtor de comida, um dos países com maior
potencial para dar segurança alimentar a um mundo cada vez mais povoado. Com
milhões de famílias sem renda para comer o mínimo necessário, a sociedade
brasileira revive o pesadelo de 1983, o ano da grande crise da dívida externa.
Naquele momento, como agora, campanhas de solidariedade, conduzidas por
igrejas, sindicatos, grupos civis e também por famílias com pelo menos uma
pessoa empregada, garantiram a sobrevivência de muita gente. Supermercados
passaram a vender asas de frango, facilitando algum consumo de carne aos mais
necessitados. Mas nem todos aguentaram a pressão, e os suicídios aumentaram.
Passados
quase 40 anos, o jornalista econômico é de novo forçado a descrever quadros
tétricos. Há, naturalmente, diferenças importantes – com alguns detalhes muito
piores. A fome, hoje, é muito mais chocante, muito mais escandalosa, porque a
oferta de alimentos é muito maior. Com ou sem crise, com maior ou menor
inflação, a comida era mais cara no começo dos anos 1980. Os frutos da
revolução agrícola, iniciada na década anterior com a Embrapa e com políticas
de modernização, só se tornariam visíveis mais tarde.
Com enormes ganhos de produção e de produtividade, a alimentação consumiria, nas décadas seguintes, uma parcela menor dos orçamentos familiares, deixando mais espaço para outros gastos. No início dos anos 1990 alguns índices de inflação foram reformulados para refletir a nova ponderação das despesas.
A
melhora dos padrões de vida foi uma das consequências, mesmo com a persistência
de amplas desigualdades. Graças aos ganhos de eficiência, a produção
agropecuária tem crescido, nas últimas quatro décadas, muito mais que as áreas
ocupadas.
Entre
as safras 1979-1980 e 2019-2020, a colheita de grãos passou de 50,87 milhões de
toneladas para 257,02 milhões, enquanto a área cultivada cresceu de 40,16
milhões para 65,92 milhões de hectares. O rendimento mais que triplicou,
passando de 1.267 quilos por hectare para 3.899. Em outras culturas, assim como
na produção dos vários tipos de carnes, a eficiência também cresceu.
Com
os ganhos de produtividade, o Brasil tornou-se um dos maiores exportadores de
alimentos e de matérias-primas de origem agropecuária. Ao mesmo tempo, a oferta
de alimentos ao mercado nacional cresceu. Os preços, apesar das oscilações,
tenderam a diminuir em termos reais. Isso foi fundamental, é preciso insistir,
para a demanda crescente de outros bens de consumo, como roupas, equipamentos
domésticos, produtos eletrônicos e veículos. O mercado de usados, no qual o
primeiro carro foi comprado por milhões de brasileiros, foi por muito tempo
essencial para a expansão dos negócios no setor automobilístico.
Avanços
continuaram, nestes quase 40 anos, apesar das muitas crises desse período,
algumas de origem externa, outras geradas no País. O Plano Real, iniciado em
1994, criou condições para contas públicas mais arrumadas, inflação mais
contida e políticas mais amplas de inclusão social. Apesar de tropeços
importantes, em nenhuma dessas crises, nem mesmo na recessão de 2015-2016,
houve episódios de fome parecidos com o de 1983. O grande retrocesso é agora
indisfarçável.
Pelos
dados oficiais, havia 14,3 milhões de desempregados, 14,2% da força de
trabalho, no trimestre móvel encerrado em janeiro. Uma contagem mais ampla
indicou 32,4 milhões de trabalhadores subutilizados, 29% da população
economicamente ativa. A economia brasileira estava em queda antes da pandemia e
sua recuperação, neste ano, será insuficiente para o retorno ao patamar, já
muito baixo, de 2019. Não há surpresa, mas o governo agiu como se a crise
devesse terminar em 31 de dezembro de 2020.
O
País entrou mal em 2021, com o consumo em queda, a indústria emperrada e uma
das maiores taxas de desemprego do mundo capitalista. O auxílio emergencial, já
reduzido a partir de setembro, foi zerado em 1.º de janeiro, deixando dezenas
de milhões de pessoas sem renda e sem perspectiva de melhora.
Os
preços de alimentos haviam aumentado nos meses anteriores. Embora tenham subido
menos neste início do ano, continuaram elevados. Ficou difícil abastecer as
panelas e a fome chegou. Sem dinheiro para o gás, famílias passaram a cozinhar
seu pouco alimento em fogões a lenha improvisados, em condições assustadoras,
mostradas pela televisão.
Campanhas
de socorro têm distribuído alguma comida, mas sem eliminar o problema e sem
evitar, no primeiro trimestre, o retorno à fome de 1983. Atolado na
incompetência, o governo central só retomou o auxílio emergencial há poucos
dias. Favorecida pela inépcia e pelo negacionismo, a pandemia continua solta, a
mortandade cresce e a economia se arrasta, enquanto o presidente se concentra
em seus interesses eleitorais e familiares. Em 1983 havia pelo menos a
esperança de retomada econômica e de continuidade da abertura política, enfim
concluída no meio da década. Hoje o discurso mais ouvido no centro do poder, em
Brasília, extravasa ambições autoritárias.
*Jornalista
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