A queda do ministro das Relações Exteriores
foi fator de descompressão que desobstruiu caminhos para se seguir correndo
atrás do prejuízo por ele causado à imagem do Brasil no exterior e às
possibilidades de o país
obter apoio para o combate à pandemia. No plano das ações internas, o fluxo da
vacinação melhorou, conseguiu-se criar ambiente um pouco mais cooperativo entre
setores do Executivo e o Legislativo, levando a comprometimento mínimo do novo ministro
da Saúde com um discurso racional e responsável, ainda que omisso quanto a
medidas de restrição a aglomerações e atividades econômicas, decretadas por
governadores e prefeitos. Esse é, como sabemos, o principal ponto de tensão que
Bolsonaro, em crescente processo de isolamento político e queda de popularidade,
promove no ambiente político e social. O isolamento, aliás, acentuou-se, como deixaram
evidente manifestos de políticos e empresários que já fizeram parte da sua base
de apoio.
Nada disso eliminou, ou mesmo aliviou, a dura rotina mortífera da contaminação e do colapso sanitário. Mas em meio à espiral crescente de efeitos perversos que se verificava antes da queda do ministro Pazuello, reabriu-se, com a rotinização relativa e lenta da vacinação, alguma perspectiva de alívio futuro. O carro do desespero permanece lotado e em movimento, mas é sensato supor que em abril ele parou de descer ladeira na banguela, como ocorria desde o início desse ano. A realidade dos recordes diários de mortes registra o ocorrido; a de internações e leitos, um processo que, timidamente, desenha esperanças. Bolsonaro segue hostil a todo alívio, mas com decrescente poder de criar retrocessos reais.
O
dia 8 de abril foi de protagonismo do STF. Uma ambígua quinta-feira que trouxe
alento e novos sobressaltos a esse processo incerto de racionalização do drama.
Alento quando, por significativa maioria, o plenário da corte revalidou a
autonomia de governadores e prefeitos no campo de luta contra a pandemia, no
qual o governo federal lhes move uma guerra paralela, sugando energias
preciosas que fazem falta na batalha contra o vírus. Frustrou-se a tentativa canhestra de arrastar
a esse campo o tema da liberdade religiosa. Foi uma decisão em sintonia com o
momento nacional de valorização racional da vida.
Penso
que o mesmo não se pode dizer da segunda decisão do dia, pela qual um ministro
da corte obriga o Senado a instalar uma CPI para, a princípio, investigar a condução do governo federal no combate à pandemia. Aqui não se discute nem a constitucionalidade
(legitimidade objetiva) da decisão, nem a justeza da aspiração de se apurar e
punir responsáveis por algo que tem fortes indícios de conduta criminosa. A análise dos fatos não pode, contudo,
ignorar efeitos que essa decisão já causa sobre a instável coordenação entre os
poderes e sobre as buscas de contenção racional do conflito político. E não
pode vislumbrar que repercussões concretas a CPI poderá ter sobre o imediatamente
grave cenário sanitário. Em nome da objetividade, o analista deve converter
esses dois pontos em perguntas. E o compromisso social que também lhe cabe deve
considerar que a legitimidade subjetiva da decisão dependerá da resposta à
primeira pergunta (retrocesso na coordenação dos poderes e na contenção do
conflito político?) ser um não e/ou da resposta à segunda pergunta (diminuirá a
escala da tragédia sanitária?) ser um sim.
As
respostas que consigo encontrar são as inversas e dão lugar à seguinte
interpretação: a intervenção judiciária, nesse caso, não atende ao maior
interesse público do momento, que é salvar vidas. Para que esse interesse seja
atendido, um requisito importante é haver o máximo possível de coordenação e
cooperação entre os Poderes da República. Que sentido tem o Senado instalar um
tribunal neste momento, como um Nuremberg em plena guerra?
Alega-se
ainda que a instalação da CPI é um direito da minoria do Senado. Pois bem, esse
direito não pode ser adiado em nome da saúde pública, como foi adiado, em nome
da mesma causa, o direito de pessoas religiosas terem acesso aos seus templos? Penso
que o STF acertou em cheio nesse último caso e se equivocou, no caso da CPI.
Os produtos que se espera de uma CPI séria
são: levantamento de fatos pretéritos; verificação de possíveis e prováveis
irregularidades e crimes; apuração de responsabilidades de entes públicos; denúncia ao Ministério Público de pessoas investidas
na condição de agentes. Tudo isso pode ocorrer daqui a meses e será bom. Mas
não salvará a vida de quem hoje agoniza sem atendimento hospitalar adequado. Por
outro lado, pode suscitar um clima de conflagração política e institucional que
ponha em risco mesmo os modestos avanços que se tem alcançado no combate à
pandemia nas últimas semanas.
Meu
argumento não deve ser confundido com previsão de catástrofe. É de esperar que hábeis
bombeiros consigam evitar que a CPI transcorra em ritmo de aventura. Se forem capazes de controlar a intensidade
das labaredas, ela pode até ajudar a tornar mais evidente, para eleitores menos
informados, os ardis do governo, aumentando seu desgaste e frustrando o desvio
de objeto, que decerto tentará, para confundir alvos e atingir governadores,
prefeitos e possíveis concorrentes em 2022, como o ex-ministro Mandetta. Se
tudo correr dentro desses trilhos benignos, a CPI pode até pavimentar o terreno
em que o presidente do Senado opera a sua política normalizadora. Que assim
seja e que a política lenta conserve suas unhas no leme, para atravessarmos melhor
esse nevoeiro até 2022. Mesmo no caso-limite de ineficácia do remédio político conservador,
a CPI poderá pavimentar a via constitucional alternativa do impeachment.
Dependerá não dela em si, mas de condições de temperatura e pressão da
atmosfera sociopolítica do pós-pandemia.
Politicamente
falando (pois para a saúde pública qualquer repercussão será a longo prazo) a
CPI é janela de oportunidade para governo e oposição, creio que um pouco mais
para o governo e o presidente, que, antes desse fato, pareciam estar cada vez mais
pressionados contra as cordas. A ver, mas não perderemos nada se ficarmos
atentos ao que nos ensina a experiência do Brasil com CPIs. Nelas, o banco dos
réus costuma ser lugar de vencidos, não de quem maneja o poder. Será uma proeza
se essa CPI sentar o governo nesse lugar.
O
efeito específico do fator Jair Bolsonaro sobre tudo isso também não pode ser
previsto, mas, seja qual for, tende a ser relevante, para bem dele e mal do
país, ou vice-versa. Como é da sua natureza, Bolsonaro já aproveita o sismo
para plantar terremoto. Oposições contam menos com seus próprios méritos e mais
com o voluntarismo pelo qual Bolsonaro, com suas próprias aventuras, desperdiça
as seguidas chances de reabilitação que certos adversários também voluntaristas
e fogosos lhe oferecem, vide o affair com Sergio Moro.
Uma
reflexão se impõe para que a CPI seja vista - sem lentes de aumento, otimistas
ou pessimistas – no quadro do contencioso político nacional, que lhe transcende
em muito. Trata-se de se o capital político acumulado pelas oposições e pela
sociedade já evita que atalhos como essa CPI alterem a rota principal que pode
levar os brasileiros a superarem, em 2022, a escolha trágica de 2018. Mais um
teste de maturidade democrática nos desafia.
Há
razões para supor que sim, pois uma consciência cívica voltada à resistência avança
no Brasil desde as eleições de 2020 e tem sempre retornado à tona em patamar
mais avançado após cada uma das várias escaramuças provocadas, nos últimos
meses, por pescadores de águas turvas, especialidade na qual o presidente é
doutor, mas não está só. Escolho não enumerar exemplos para não alongar o
texto. Fico apenas naquilo que pesquisas sinalizam: que o presidente voltou a
se isolar – como em março/abril de 2020 - porque se aparta, na companhia de
suas milícias digitais e presenciais, de um amplo consenso básico da sociedade
política, da burocracia da administração pública e da sociedade civil, sobre
como lidar com a pandemia. O presidente conserva influência sobre sentimentos
públicos de modo a incompatibilizar faixas da população com esses esforços e a rebaixar
o nível de crença geral na democracia. Aí está o nó político a desatar. É
preciso dedicar tempo a analisar senões que, no campo das oposições, ainda
limitam as chances de o relativo consenso cívico que se formou ter dinâmica de
convergência política irreversível.
Tratarei disso no próximo sábado, se novos sismos não mudarem a pauta.
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