Folha de S. Paulo
O maná pastoral que faz extorsão predatória
de manés agrada a um novo tipo de capitalismo
Nos EUA, o novo ano tem o mesmo número de um
plano conservador chamado "Projeto 2025", ainda mal conhecido entre nós. Elaborado
pela Heritage Foundation e por gente que auxilia Trump desde
seu primeiro mandato, o plano visa a um regime autocrático, por meio do
debilitamento da Constituição, com abolição de direitos femininos que vão do
aborto ao voto. É projeto explícito de um "revival" dos anos 50,
quando uma patriarquia protestante dirigia o país.
Não se trata, portanto, de mais uma bizarrice trumpista. A retrospecção parte do período em que despontou com força entre nacionalistas cristãos, bilionários e a John Birch Society, a ideia de um Estado teocrático. Isso foi corroborado nos anos 80 pelo presidente Reagan, que estimulou a politização dos grupos cristãos de extrema direita e a penetração extremista em alas republicanas. Depois, as presidências dos Bush, pai e filho, fizeram avançar esse movimento com a introdução de ensino religioso em escolas públicas (cerca de 30% da população é secular, não adere a nenhuma religião) e fundos públicos para escolas privadas cristãs.
As preocupações liberais com as inclinações
teocráticas dessa tendência política estão bem delineadas no livro "Terror
Sagrado", de Jim Siegelman e Flo Conway, aclamado nos anos 80,
quando Reagan deu sinal verde para os batistas do Sul e os
evangélicos de um modo geral. É o mesmo dado por Trump aos nacionalistas
cristãos, os bilionários e o republicanos do Maga, empenhados numa "América novamente grande".
Entende-se assim por que gente como Elon Musk e
figurões corporativos de menor porte pairam sobre o aparelho estatal trumpista.
Uma teocracia tecnológica permitiria, acima dos entraves constitucionais, uma
mega desregulamentação suscetível de manter os EUA como principal competidor no
mercado mundial.
Esse pano de fundo é uma sombra ominosa que
torna nada risíveis as conhecidas bizarrices de Trump. Não tem mesmo nenhum
motivo para sorrir a classe trabalhadora que o apoiou na última eleição. O que
Musk, os tecnocratas e agora Trump privilegiam são imigrantes altamente
treinados para ingresso nas indústrias
competitivas. Essa clivagem tem algum potencial para cindir a base
republicana, mas sem relevância na ótica do Projeto 2025, lastreado por uma
ideologia religiosa que nivela "god" a "gold".
Resta determinar a natureza dessa religião,
em que cristianismo é só um "branding" de mercado. Nada a ver com
espiritualidade, e sim com o fetiche de uma prosperidade ilusória, além de
protocolos rasteiros de conduta. Em vez da negatividade implícita nos
mandamentos cristãos (a dialética do "não"), o livre trânsito
empreendedor.
Para tanto conflui uma mistura de coaching e
autoajuda, que não ajuda ninguém, mas atenua a angústia com fragmentos verbosos
de mitos consoladores. É espantoso o relato de um imigrante brasileiro marcado
para a deportação, mas que ainda assim apoia Trump. Outra versão da síndrome do torturado que ama o
torturador.
Tudo isso já reverbera entre nós há muito
tempo. Não serve a grandes tecnocratas empreendedores, que aqui não existem.
Mas agrada a um tipo novo de capitalismo, que não precisa se assustar com
fantasmas do passado como a teologia da libertação. E é um maná pastoral para a
extorsão predatória de manés.
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